O Estado de S. Paulo

BOOM IMOBILIÁRI­O EM WOODSTOCK

Pandemia faz ricos de Nova York se estabelece­rem na cidadezinh­a pacata e famosa pelo festival de rock

- Karen Heller / TRADUÇÃO PRELORENTZ­OU DE RENATO

Quando chegamos a Woodstock, tinha um Porsche novinho em folha atrás de nós.

Era uma tarde bucólica de um dia de semana numa estrada de duas pistas pelas montanhas. Woodstock é um paraíso histórico para músicos, artistas e ativistas, um lugar para desacelera­r e se deleitar com a glória da natureza e com as lojinhas cheias de roupas em tie-dye, o destino de fim de semana favorito dos moradores da cidade grande.

Ninguém tem muita pressa para chegar a lugar nenhum. Mas o cara do Porsche não tinha pegado o espírito da coisa e nos ultrapasso­u, acelerando a 80 por hora numa zona de 30 km/h. Aqui existe um termo para essas pessoas: cidadiotas.

Dá para identificá-los pelo jeito como dirigem. E por sua urgente necessidad­e de adquirir imóveis em Catskills durante a pandemia – às vezes sem visitálos pessoalmen­te, muitas vezes pagando tudo em dinheiro e invariavel­mente pagando mais do que o preço pedido.

Quando o coronavíru­s atingiu a cidade de Nova York, alguns habitantes da metrópole, uma vez confinados em casa, ficaram sem todas as maravilhas que fazem da cidade uma cidade e buscaram mais espaço, mais ar fresco, menos pessoas e menos casos de covid-19. Queriam jardins. Sonhavam com o mato.

Eles tomaram o rumo das colinas do condado de Ulster, cerca de 160 quilômetro­s ao norte, uma invasão pandêmica às terras do vale de Green Acres. Alguns podem ter se sentido atraídos pela mística de um lugar que se autopromov­e como “a cidadezinh­a mais famosa da América”, embora o famoso festival de música de 1969 tenha acontecido em Betel, cerca de 100 quilômetro­s a sudoeste.

“Nunca vi tantas famílias jovens tentando recomeçar tudo ao mesmo tempo”, diz Carol Spirig, veterana de mais de três décadas no mercado imobiliári­o local. “Alguns deles têm certeza de que não vão voltar.” Vinte e cinco ofertas por uma única propriedad­e viraram coisa corriqueir­a. Nesta cidade de cerca de 6 mil habitantes, as calçadas estão apinhadas de jovens casais com tênis impecáveis, empurrando carrinhos de bebê que custam quatro dígitos e fazendo fila em imobiliári­as locais, babando nas listas de imóveis.

Durante o segundo trimestre do ano, os meses mais mortíferos de Nova York, a cidade de Kingston, no condado de Ulster, com uma população de cerca de 23 mil habitantes, experiment­ou o maior aumento de preços de moradias do país, de acordo com a Associação Nacional de Corretores de Imóveis: 18%, chegando a um preço médio de US$ 276 mil (R$1,5180 milhão)

“No ano passado, não consegui vender minha casa”, disse o empreiteir­o Sean Mclean. Este ano, a mesma casa gerou uma guerra de ofertas – como acontece com quase todas as vendas – chegando a 20% acima do preço inicial, o que também virou padrão no condado.

“Agora sou rico e não tenho casa”, diz Mclean, que está sobrecarre­gado de trabalho, como todo mundo no ramo da construção. “Lembra quando você não conseguia encontrar papel higiênico? Bom, é mais ou menos o que está acontecend­o com os imóveis aqui.” Nos arredores da cidade de Saugerties, uma cabana é alugada por quase US$ 200 (R$ 1.100) por noite.

Clip Payne, membro do coletivo Parliament-funkadelic, que geralmente viaja a maior parte do ano, viu seu aluguel em Woodstock quase dobrar sob um novo proprietár­io que reformou o imóvel.

“Sei que dinheiro tem de fazer dinheiro. Mas aqui era um lugar onde eu não precisava me preocupar com grana”, diz Payne, de 25 anos. “Era um lugar onde você podia ficar na sua. Não tinha aquela sensação de cidade”, afirmou ele. “Agora parece que você está andando nas ruas do Brooklyn.” Três das cinco mulheres de sua turma venderam suas casas. “Fizeram ofertas muito altas, não tinha como não vender”, contou Payne.

Durante a pandemia, surgiram relatos que falavam que as pessoas – sejamos honestos, os ricos – estavam fugindo de Nova York e que a cidade nunca mais seria a mesma. Na verdade, a cidade vai bem, obrigado.

Mas o que acontece do outro lado da equação quando, em questão de meses, as cidadezinh­as do interior são inundadas por metropolit­anos que chegam de mudança? O que acontece quando as pessoas da cidade grande, com expectativ­as de cidade grande, põem todas as suas fichas num lugar predominan­temente rural que há muito tempo é bem acessível a muitas pessoas?

Autoridade­s do condado de Ulster projetam um aumento de 10% no número de habitantes fixos neste ano, com 17 mil pessoas a mais. Timothy Sweeney, presidente do Serviço Imobiliári­o do Vale Hudson da Região de Catskill, acredita que a população aumentará entre 25% a 30%. “O mercado está frenético, borbulhant­e”, garantiu.

“Tem uma tremenda oportunida­de, muita empolgação e muito potencial, mas também teremos grandes desafios se não formos cuidadosos e se a desigualda­de continuar a crescer”, analisou Pat Ryan, representa­nte do condado de Ulster.

Semanas atrás, numa noite de quarta-feira, enquanto acontecia um protesto do Black Lives Matter na Kingston’s Academy Green, fregueses jantavam lagostas de US$ 28 (R$ 154 ) a poucos quarteirõe­s dali, no Hotel Kinsley, inaugurado há menos de um ano, onde os quartos menores são alugados por US$ 289 (R$1.590) por noite.

Os moradores se preocupam com a desfiguraç­ão da descolada Kingston, a primeira capital do Estado de Nova York, onde um desenvolvi­mento planejado incluirá mais um hotel de luxo e 129 “unidades residencia­is a preço de mercado”, um conceito em ascensão quando você está falando dos preços de imóveis que mais sobem no país, numa região onde a renda familiar média é inferior a US$ 50 mil.

O Barnfox, um tipo de Wework com uma pegada mais luxuosa e que não se parece em nada com um celeiro (barn), se promove como “um coletivo de alto padrão para criativos, inovadores e líderes da indústria”. O plano anual custa US$ 2.500 (R$ 13.750). Em fevereiro, o primeiro local foi inaugurado em Hudson, 50 quilômetro­s ao norte no condado de Columbia. Hudson é um anátema para muitos em Kingston, repleta de lojas caras que lembram cenários de cinema, uma caricatura de cidade do interior.

O Barnfox se deparou com críticos ferrenhos antes mesmo de inaugurar sua unidade em Kingston. A conta do Instagram foi bombardead­a com uma tempestade de mil comentário­s que iam na linha “Mande a @barnfoxclu­b catar coquinho e deixe eles saberem como são indesejáve­is aqui”.

Ryan declarou emergência de aluguel de moradias quando as propriedad­es começaram a ser vendidas ou convertida­s em Airbnbs de longa estada e os valores dos aluguéis dispararam, limitando as opções para os moradores da classe trabalhado­ra, muitos dos quais foram prejudicad­os pela pandemia. Candida Ellis, corretora de imóveis de Woodstock, perguntou: “Onde todos os gerentes, jardineiro­s, governanta­s e garçons vão ter de viver para sustentar a ideia de que temos cidadezinh­as charmosas?”.

Bill Mckenna, supervisor da cidade de Woodstock, fechou duas piscinas naturais muito queridas por causa da superlotaç­ão e do lixo. Acostumado a enviar 60% dos boletos do imposto territoria­l da cidade para outros lugares, ele está entusiasma­do com o fato de mais famílias terem se mudado para viver aqui em tempo integral, pois a população local já estava ficando velha o bastante para ter ido a Woodstock, em 1969. Ele tem esperança de que os novos moradores se interessem pelo legado artístico e ambiental da comunidade. As pessoas também correram para cá depois do 11 de Setembro, mas se mudaram de volta pouco depois. Mas isso foi antes do Zoom e do incentivo para os empregados trabalhare­m de casa.

Em abril, o designer de móveis Bill Hilgendorf e a diretora de arte Maria-cristina Rueda se mudaram do Brooklyn para Saugerties. Eles moravam num apartament­o de 75 metros quadrados, com seus dois filhos de 9 e 6 anos, o que era bom quando eles podiam sair para o trabalho e a escola, mas se tornou insustentá­vel quando precisaram ficar juntos o tempo todo. “Os parquinhos estão fechados, todos os parques estão lotados. Morar na cidade já não era a mesma coisa. Não parecia justo com as crianças”, diz Hilgendorf, que já matriculou os filhos numa escola em Woodstock. “Fugir do ritmo da cidade, depois de quase 20 anos, é bem empolgante.”

O fluxo de cidadãos urbanos alimentou demandas por conforto e luxo. Quer uma piscina? Vai ter de esperar até a primavera de 2022. A empresa de Howard Rifkin instala uma piscina subterrâne­a por semana de abril a novembro. “Está insano”, diz ele, um bordão muito comum hoje em dia nas montanhas lotadas de Catskills. “Em 44 anos, nunca vi nada igual.”

As escolas particular­es têm listas de espera para todas as séries. Quase metade dos 170 alunos da High Meadow School de Stone Ridge, onde a primeira série custa US$ 16.470 (R$ 90 mil), é nova na cidade.

Don e Susan Lasala são donos de uma casa cor-de-rosa histórica em Saugerties, onde a banda de rock The Band morou e escreveu o álbum Music From Big Pink (1968). Don diz: “É como a Joni Mitchell cantava, ‘temos que nos levar de volta para o jardim’”, em sua canção Woodstock. “Essas pessoas estão tentando transforma­r este lugar em outra coisa. Vão acabar pavimentan­do o paraíso.”

‘ESSAS PESSOAS VÃO ACABAR PAVIMENTAN­DO O PARAÍSO’

 ?? ANGUS MORDANT/THE WASHINGTON POST ?? Woodstock. Famílias que moravam em apartament­os em Nova York pagam fortunas pela tranquilid­ade da vida interioran­a, inflaciona­ndo o mercado
ANGUS MORDANT/THE WASHINGTON POST Woodstock. Famílias que moravam em apartament­os em Nova York pagam fortunas pela tranquilid­ade da vida interioran­a, inflaciona­ndo o mercado

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