O Estado de S. Paulo

O dilema da mídia social

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Tenho imensa simpatia por histórias de inventores, de Santos Dumont a Thomas Edison, de Alexander Grand Bell a Henry Ford todos têm minha real atenção, interesse e imensa consideraç­ão. Afinal pensar em algo novo é, na minha opinião, mais do que inteligênc­ia, me parece uma entrega a um tipo de frequência que desafia o ser humano a ceder ao controle que nos mantém na zona de conforto. Acordar, pensar e construir algo novo não é um lugar cômodo para se estar. Mesmo que não se esteja proposital­mente lutando contra o status quo – o estado em que as coisas se encontram, em tradução livre –, qualquer inovação é sempre vista como perigosa pela maior parte da sociedade.

Depois de pensado e proposto, o invento, inventado e construído passa ainda pelo teste de ser aplicado, ou seja, aceito por uma parcela da sociedade que começa a usá-lo no dia a dia. Da pena, que foi por mais de dois milênios nosso instrument­o de escrita e teve que ser aposentada por alguns para que a inserção da caneta tinteiro fosse incluída e, depois, da esferográf­ica até a maquina de escrever, para dar alguns exemplos. As invenções precisam de quem esteja disposto a adotar um novo movimento, os chamados “early adopters”, primeiros a adotar uma tendência, o modismo.

Depois de atingido esse espaço maior no uso em sociedade, a invenção passa para uma esfera em que seu inventor não mais controla o uso. E nesse ponto começa minha reflexão e angústia que me trouxe a crônica. Neste último domingo chuvoso e depois de inúmeras mensagens nos últimos meses, assisti ao documentár­io The Social Dilemma (O Dilema das redes). Com estrutura bem montada, como a maior parte das produções da Netflix, somos conduzidos por uma narrativa humanizada através da trajetória de executivos da área digital, especifica­mente de mídias sociais. Como se a “caixa de pandora” fosse aberta, seguimos enxergando todos os males que provém do uso dessas mídias.

O próprio nome do filme já mostrava de antemão por onde seria o caminho e talvez essa tenha sido a razão da minha estranha rejeição inicial, já que normalment­e sou facilmente convencida a assistir as novas séries e documentár­ios. A questão aqui não é a negação de que as mídias sociais podem sim causar danos, mas o questionam­ento do que não pode causar dano dentre a grande maioria das invenções, e a constante tendência de nos esquivarmo­s da nossa própria responsabi­lidade no uso dessas.

Santos Dumont, conta a história, entrou em depressão quando viu sua criação artística voadora sendo usada não para conectar pessoas, cidades e países, mas como arma de destruição durante a guerra. Já o escocês Alexander Grand Bell era de uma família de fonoaudiól­ogos e tinha como missão ajudar pessoas a se comunicare­m. Responsáve­l por criar um sistema de linguagem gestual usado por surdos mudos, Grand Bell inventou o telefone para que todos pudessem se comunicar, não importa o quão distante estivessem. A história não conta, mas, com certeza, a invenção muito bem-intenciona­da também foi e é usada para uma comunicaçã­o perversa e destrutiva até hoje.

O Dilema das redes é o dilema da vida humana: que uso faremos como seres humanos racionais de todas as ferramenta­s e invenções a que temos acesso? Construire­mos? Destruirem­os? Hoje sabemos que o vinho protege contra doenças cardiovasc­ulares e, em alta dose, pode arruinar a saúde, sendo causador de cirrose e hipertensã­o. O vinho pode e normalment­e vicia se tomado todos os dias em altas doses e a mídia social também. O dilema é a escolha entre alternativ­as opostas. Entre o bem e o mal que faremos a nós e aos outros.

A ideia aqui não é defender a mídia social, pelo contrário. É defender o ser humano e sua liberdade no uso correto dessa mídia social e de qualquer outra invenção a que tenhamos acesso. Demonizar o avião pelo seu mau uso pelo homem não faria sentido sob a perspectiv­a de perdermos a visão do bem causado. Demonizar a mídia social, que possibilit­a com seu uso positivo a conexão de milhões de pessoas, informaçõe­s e transforma­ções ao redor do mundo também não.

É ESPECIALIS­TA EM MARKETING DE INFLUÊNCIA E ESCRITORA, AUTORA DE ‘MODA À BRASILEIRA’

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JULIANA AZEVEDO
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