Estante*
Imagens Apesar de Tudo é um ato de coragem do filósofo, historiador e crítico francês Georges Didi-Huberman. Fala de algo que muitos gostariam de esquecer para sempre: o Holocausto. Mas ele volta porque não se trata apenas de história, e sim de um crime cuja prova é justamente o que interessa a Didi-Huberman: as quatro únicas fotos do campo de Auschwitz tiradas por integrantes do Sonderkommando. Parte do livro é dedicada justamente à polêmica provocada por essas fotos: muitos viram nessas imagens uma obscenidade ainda maior que o extermínio no campo nazista. O autor não se furta ao debate e ainda faz a defesa da imagem como uma forma de resistência.
A literatura brasileira salvou a vida do intelectual judeu húngaro Paulo Rónai. Às vésperas da 2ª Guerra Mundial, ele se apaixonou pelos autores do País e publicou, na Hungria, uma antologia de poesia brasileira. Esse contato com a nossa cultura fez com que Rónai conseguisse escapar das garras do nazismo e viesse para o Brasil em 1941. Pouco depois, tornou-se amigo do diplomata e então aspirante a escritor João Guimarães Rosa. Dessa amizade, Rónai extraiu uma extensa fortuna crítica de um dos principais autores brasileiros. Seus ensaios sobre Guimarães estão reunidos no livro Rosa & Rónai, organizado por Ana Cecilia Impellizieri Martins e Zsuzsanna Spiry.
Escritos entre 2010 e 2018, os textos de O Encanto de Narciso, do fotógrafo e professor Boris Kossoy, revela, como no livro de Didi-Huberman, Imagens Apesar de Tudo, um profundo desejo de conhecer o mundo por meio das imagens. Nessas reflexões sobre a fotografia, Kossoy discute as diferenças entre representação e documento fotográfico, argumentando que “a fotografia é sempre ambígua, seja analógica ou digital”. No livro há um texto dedicado ao fotojornalismo, em que Kossoy analisa a obra do editor de imagens Wilson Hicks (1897-1970) – ele trabalhou para a Associated Press e a revista Life. Kossoy conclui a obra falando da patológica mania dos selfies.
Pode-se dizer, não sem certo anacronismo, que a poeta argentina Alfonsina Storni (18921938) foi uma feminista pioneira. Antes do surgimento do feminismo, antes mesmo da publicação de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, a autora já apontava em seus versos as contradições do patriarcado. No entanto, sua poesia não apenas celebra o feminino, como também a liberdade sexual da mulher. Desprezada pela crítica da época – incluindo aí Monteiro Lobato e Jorge Luis Borges –, Alfonsina Storni vem ganhando cada vez mais reconhecimento póstumo, tendo agora sua primeira antologia poética publicada no Brasil, Sou uma Selva de Raízes Vivas.
A instabilidade da vida econômica, cultural e política pode ter como resultado uma tragédia, como aconteceu nos anos 1930 na República de Weimar, que levou muita gente a apoiar um maníaco chamado Hitler. Em Crise da Democracia,o professor Adam Przeworski fala do colapso desse sistema em países que passam justamente por uma crise decorrente da pandemia e do desemprego em massa. Curiosamente, o estudioso cita vários país sul-americanos (Argentina, Chile), mas esquece do Brasil. Ainda assim, uma obra importante, em que Przewroski denuncia a intimidação da mídia de oposição e o avanço da máquina de propaganda em regimes autoritários.
Muitos livros recentes se dedicam a compreender o atual estado de descrença na democracia pelo qual o mundo ocidental vem passando. Desde que “pósverdade” foi eleita a palavra do ano do dicionário de Oxford em 2016, esse é um dos principais problemas a ser enfrentados. No entanto, o livro
Uma Breve História das Mentiras Fascistas, de Federico Finchelstein, mostra que “fake news” é uma denominação recente para uma estratégia bastante antiga em regimes extremistas. A obra retraça, desde Mussolini e Hitler, como a mentira sempre foi um instrumento de governo, e por que os seguidores de figuras carismáticas acreditam em suas falácias.
Desde que foi declarado uma república, em 1926, o Líbano tem registrado uma sucessão de períodos de turbulência política. Empenhado em analisar a transição de tempos prósperos para uma era de conflito, o pensador Roger Scruton, morto em janeiro deste ano, escreveu, em 1987, Uma Terra Feita Refém - O Líbano e o Ocidente, reunião de ensaios em que o filósofo trata de temas políticos com a mesma lucidez com que escancara a perseguição de cristãos, o avanço da militância islâmica e a esperança da restauração de um Grand Liban, distante da intolerância e mais perto de um passado em que reinavam a cultura, o direito e as liberdades democráticas.
O primeiro romance do escritor americano Kurt Vonnegut,
Piano Mecânico,
foi fortemente influenciado por três experiências do autor na década de 1940: seu emprego na General Electric, sua participação na 2ª. Guerra Mundial e a leitura de 1984, de George Orwell. O livro se passa em uma sociedade distópica, após a 3ª Guerra Mundial, em um cenário de extrema mecanização do trabalho, com operários e até executivos sendo substituídos por robôs. Piano Mecânico retrata o desencanto do engenheiro Paul Proteus, um dos poucos privilegiados nessa sociedade, ao se deparar com um antigo colega de trabalho no outro extremo do espectro social.
Narciso em férias,
o livro, inspirou o documentário sobre a prisão de Caetano Veloso durante a ditadura militar dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil. Trata-se de uma edição avulsa do capítulo homônimo que integra a autobiografia do cantor e compositor, Verdade Tropical.
Além do relato de Caetano, o livro traz uma seção com registros do processo aberto pela ditadura militar contra ele – documentos encontrados no Arquivo Nacional pelo historiador Lucas Pedretti e revelados ao artista pela primeira vez meio século mais tarde, em 2018. Caetano foi preso por uma fake news, a de que ele e Gil teriam cantado de forma deturpada o Hino Nacional.
Suíte Tóquio, novo livro de Giovana Madalosso, transplanta para a realidade brasileira o conflito central de um dos mais impactantes romances contemporâneos, Canção de
Ninar, da francomarroquina Leila Slimani. A oposição entre essência e aparência e o embate entre uma babá/empregada doméstica e seus patrões são os elementos chave da obra. Mas se Slimani apelou para um desfecho brutal revelado logo de cara, Madalosso se interessa em mostrar a hipocrisia dominante nas classes mais abastadas. Em Suíte Tóquio, a babá Maju sequestra a filha de sua patroa Fernanda, colocando em colisão dois mundos separados por um abismo social.