O Estado de S. Paulo

Promoção por baciada

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Ainda que tenha sido suspensa, a promoção em massa de 607 procurador­es federais num único dia revelou um sistema disfuncion­al, a merecer pronta reforma.

Diante da repercussã­o negativa, a Advocacia-geral da União (AGU) suspendeu a promoção em massa de mais de 600 procurador­es federais do órgão à categoria especial. A decisão do procurador-geral federal, Leonardo Lima Fernandes, impediu que se concretiza­sse uma gritante anomalia funcional, que faria com que, dos 3.783 procurador­es federais, 3.489 (92%) estivessem no topo da carreira. Mas, ainda que tenha sido suspensa, a promoção em massa de 607 procurador­es federais num único dia revelou um sistema disfuncion­al, a merecer pronta reforma.

Decretada no dia 18 de setembro, a promoção em massa padecia de três grandes problemas. Em primeiro lugar, o progresso na carreira deve se dar de forma individual, caso a caso, como consequênc­ia de uma avaliação sobre o desempenho de cada servidor. Diante de uma medida tão ampla – segundo a AGU, 304 dos 607 procurador­es foram promovidos por mereciment­o –, resta patente que a avaliação individual não teve especial peso na decisão sobre a promoção de cada servidor.

O segundo problema relaciona-se às regras de promoção por antiguidad­e. De acordo com a portaria da AGU, 307 dos 607 procurador­es federais foram promovidos pelo critério do tempo de serviço, e quase todos eles foram alçados ao topo da carreira. Há aqui evidente desproporç­ão, causada em boa medida por mudanças feitas nas regras internas entre 2012 e 2014. Segundo a norma vigente, a cada cinco anos que um procurador federal está no cargo, abre-se uma vaga para a sua promoção à categoria acima. A vaga é aberta em função da pessoa, e não das necessidad­es do órgão. Por essas regras, apenas 8% dos integrante­s da Procurador­ia-geral Federal estão na base da categoria, com remuneraçã­o de R$ 21 mil. A categoria especial recebe R$ 6,1 mil a mais.

O terceiro problema é que, a rigor, a portaria da AGU com a nomeação em massa não foi ilegal. Assim reconheceu o procurador-geral federal na decisão que suspendeu a portaria. “Todos

os atos praticados neste procedimen­to revestiram-se de legalidade, praticados nos estritos termos da Lei Complement­ar 73/1993, da Lei 10.480/2002 e da Portaria AGU 460/2014”, disse Leonardo Lima Fernandes. Ou seja, temse um sistema disfuncion­al, cujas regras não impedem um disparate dessa ordem. Mais de 90% de uma categoria profission­al encontra-se no topo da carreira. A AGU assinala que, consideran­do os cargos não preenchido­s, o porcentual dos servidores no topo da carreira ficaria em 79% – o que reduz um pouco o número, mas confirma o desajuste.

Como se estivesse a ratificar a necessidad­e de profunda reforma dessas carreiras, o presidente da Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe), Marcelino Rodrigues, afirmou, antes da suspensão da portaria, que a promoção de 607 procurador­es federais num único dia “é um procedimen­topadrão”. Segundo Rodrigues, “não houve nenhuma criação de vaga excepciona­l”.

Em 2017, foram promovidos 79 procurador­es; em 2018, 69; e em 2019, 83. Agora seriam 607 beneficiad­os. O presidente da Anafe negou, no entanto, que a promoção em massa estivesse ligada à preocupaçã­o com a tramitação da reforma administra­tiva no Congresso. Em setembro, o governo federal encaminhou ao Congresso proposta de emenda constituci­onal (PEC) com alterações nas regras relativas ao funcionali­smo. Ainda que o texto original do governo não mexa com as carreiras dos atuais servidores, há possibilid­ade de que emendas do Congresso as incluam na reforma. Neste caso, a promoção foi suspensa, mas fica evidente a habilidade de corporaçõe­s de servidores públicos para antecipar-se a legislaçõe­s futuras mais rígidas, garantindo benefícios.

Diante de regras tão disfuncion­ais, que permitem a promoção num só dia de 607 procurador­es federais, é bom lembrar o art. 37 da Constituiç­ão, dispondo que “a administra­ção pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoali­dade, moralidade, publicidad­e e eficiência”. Esse é o critério.

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