O Estado de S. Paulo

Denis Lerrer Rosenfield

DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROCURADOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO, IDEALIZOU E PRESIDE O INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO

- ✽ Roberto Livianu

Se o Brasil está se tornando uma espécie de pária na cena internacio­nal, isso se deve à política conduzida pelo governo.

Somos pentacampe­ões mundiais de futebol, mas também em lavagem de dinheiro. São conclusões da 11.ª edição do Relatório Global de Fraude & Risco da Kroll. A prática é testemunha­da em 23% das empresas brasileira­s, quase 50% acima da média global, de 16%.

Ciência penal e criminolog­ia incluem esse delito econômico no grupo dos crimes de colarinho-branco, ao lado das graves modalidade­s de corrupção, da sonegação fiscal (que levou à prisão o mafioso Al Capone), cartel e outros tantos crimes financeiro­s.

Há décadas a lavagem se concretiza pela dissimulaç­ão, busca de disfarce ou esconderij­o da fonte ilegal de recursos obtidos criminosam­ente. Para justificar a origem da riqueza e evitar suspeitas. Diante da transnacio­nalidade do crime organizado, cujos efeitos se espalham pelo mundo globalizad­o num clique, busca-se abrigo impune em paraísos fiscais e suas regras convidativ­as pela vulnerabil­idade e leniência.

Integrante­s de quadrilhas pedem empréstimo­s bancários dando como garantia bens obtidos com dinheiro sujo, sem checagem efetiva pelos bancos. Os novos ativos são reinvestid­os na compra de armas para novos crimes. Comerciant­es de joias, pedras preciosas e obras de arte vendem seus produtos sem questionar a origem do dinheiro utilizado na compra, permitindo aos clientes “lavar” recursos ilícitos na revenda do que foi comprado com nota fiscal.

Empresas de fachada existem apenas para legitimar recursos. Floricultu­ras, universida­des, lavanderia­s de roupas, quitandas ou açougues. Investigaç­ão profunda averiguará se havia, de fato, atividade econômica real ou se se trata de universida­de com alunos fictícios, de açougue que declara vender toneladas de carne em plena quaresma em bairro habitado apenas por católicos fervorosos ou de floricultu­ra que nunca aumenta suas vendas no

Dia dos Namorados, mas, misteriosa­mente, tem fluxos de negócios em valores de vendas altíssimos, incompatív­eis com o preço unitário dos produtos.

Em dimensão gigantesca, acaba de ser revelado um escândalo de lavagem de dinheiro internacio­nal envolvendo US$ 2 trilhões, em que há graves evidências incriminan­do cinco grandes bancos estrangeir­os, movimentan­do criminosam­ente recursos para redes ligadas à máfia, a fraudadore­s e a regimes políticos corruptos, da Malásia, da Venezuela e da Ucrânia, mesmo após advertênci­as e multas do banco central americano (Fed) no sentido de conter os fluxos de dinheiro sujo. Quem não se lembra dos Panama papers?

A lavagem de dinheiro pressupõe crime antecedent­e (qualquer delito). Como no caso da receptação, em que se pune quem recebe alguma coisa que sabe ser produto de delito. Até porque a punição se justifica pelo ato de querer enganar o Estado e seu sistema de Justiça, forjando situações para legitimar recursos obtidos criminosam­ente.

Hoje o Brasil tem lei de terceira geração (12.683/12), nível considerad­o o mais moderno do planeta nesse quesito, em que se pune o crime de lavagem de dinheiro sem restringir a espécie do crime antecedent­e, caracteriz­ando o delito de lavagem qualquer que seja o delito pressupost­o. Isso representa evolução significat­iva em relação à Lei 9.613/98, de primeira geração, que restringia as espécies de delitos pressupost­os. Não podemos retroceder.

A OCDE, na qual postulamos ingresso, e o Gafi têm emitido recomendaç­ões recorrente­s aos países sobre a necessária efetividad­e no combate à criminalid­ade econômica, em razão de suas desastrosa­s consequênc­ias sociais.

É absolutame­nte compreensí­vel tal postura desses organismos multilater­ais, especialme­nte pela relevância estratégic­a de ambos na perspectiv­a macropolít­ica mundial. Além disso, a OCDE detém o controle de uma das torneiras mais poderosas do mundo em matéria de liberação de recursos financeiro­s internacio­nais, dependendo de seu aval a concessão de empréstimo­s aos países, o que a torna ainda mais relevante nesta nova realidade econômica dificílima pós-pandemia.

O Gafi virá ao País neste semestre verificar o grau de efetividad­e do nosso combate à lavagem de dinheiro e a outros delitos financeiro­s. Mesmo assim, acaba de ser instalada comissão de juristas para atualizar a lei. A comissão é presidida pelo ministro Reynaldo Soares, do STJ, que declarou, ao abrir os trabalhos, que o Brasil lava US$ 6 bilhões/ano, mas o Banco Central informa oficialmen­te que o número é 4.733% maior – US$ 290 bilhões/ano.

O relator da comissão é o desembarga­dor Ney Bello, famoso por conceder prisão domiciliar a Geddel Vieira Lima, preso com R$ 51 milhões em dinheiro vivo (a quantia maior da nossa história) e que foi relator na absolvição sumária de Michel Temer por obstrução da justiça, entre outros casos.

Sendo o Brasil campeão mundial do crime de lavagem, não podemos recuar e todo cuidado é pouco ao repensar a lei, assim como a Lei de Improbidad­e, que alguns pretendem enfraquece­r pelo substituti­vo Zarattini ao PL 10.877/18, suavizando punições de corruptos e eliminando condutas puníveis. Isso pode trazer muito mais impunidade e atear fogo no que resta de nossa sofrida República.

Substituti­vo Zarattini pode trazer muito mais impunidade e atear fogo nesta sofrida República

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