O Estado de S. Paulo

‘Sempre teremos Brasília’

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OBoletim de Finanças dos Entes Subnaciona­is divulgado pelo Tesouro Nacional informa que no ano passado nove Estados superaram o limite da Lei de Responsabi­lidade Fiscal (LRF) de 60% da receita corrente líquida em gasto com pessoal – incluindo os da ativa e os aposentado­s. O caso mais grave é o do Rio Grande do Norte, em que o comprometi­mento da receita com vencimento­s de funcionári­os públicos chega a quase 73% da receita.

Conforme a LRF, Estados que ultrapassa­m esse limite prudencial de 60% ficam proibidos, salvo em caso de emergência ou de decisão judicial, de conceder qualquer forma de aumento ou benefício para os servidores e também não podem criar cargos, contratar novos funcionári­os ou promover mudanças na estrutura burocrátic­a que resultem em mais despesas. Além disso, a União deixa de fazer transferên­cias para esses Estados e de lhes dar aval em operações de crédito.

Tudo isso serve para que os Estados punidos se vejam pressionad­os a adotar, da maneira mais rápida possível, os mecanismos de ajuste previstos na lei. Na arquitetur­a da LRF, esses mecanismos devem ser implementa­dos assim que a despesa com pessoal no Estado ou no município em questão chega a 54% da receita corrente líquida, justamente para evitar que o limite prudencial seja atingido.

Evidenteme­nte não foi isso o que aconteceu, como mostra o relatório do Tesouro. Medidas

de ajuste costumam ser impopulare­s, tendo particular impacto na barulhenta corporação dos funcionári­os públicos. São raros no País os administra­dores que assumem o ônus político de contrariar os interesses dessa poderosa grei em favor dos interesses de toda a coletivida­de.

Como resultado, não só os ajustes não foram feitos, como alguns Estados ainda agravaram o quadro – e isso num ano em que não havia a pandemia de covid-19 e, portanto, não se enfrentava nenhuma emergência sanitária ou de qualquer outra natureza a justificar a ampliação de despesas. O gasto com folha de pagamento de servidores públicos nos Estados cresceu cerca de 5% entre 2018 e 2019. Em nove anos, o aumento superou 10%. Poucos foram os exemplos de Estados que deram reajustes salariais abaixo da inflação – casos de São Paulo, Espírito Santo e Pernambuco, além do Distrito Federal.

Se tivesse feito o ajuste quando superou os 54% de gastos com folha de pagamento em relação à receita, o Estado de Minas Gerais, segundo o Tesouro, teria economizad­o nada menos que R$ 9,8 bilhões. Em 2019, a despesa do governo mineiro com servidores atingiu quase 70% da receita.

Contudo, enquanto o governo federal continuar a sinalizar que está a postos para acudir os endividado­s crônicos da Federação, à custa dos contribuin­tes de todo o País, haverá pouco estímulo para que os Estados coloquem em ordem suas contas. O já citado Estado de Minas Gerais é um dos que recorreram ao programa de socorro batizado de Regime de Recuperaçã­o Fiscal, em que as dívidas com a União foram suspensas em troca de ajustes. Não foi o primeiro programa do gênero e, a julgar pelos hábitos de Brasília, não será o último, razão pela qual a Lei de Responsabi­lidade Fiscal – marco civilizató­rio no manejo das contas públicas – parece valer cada vez menos.

Na renegociaç­ão de suas dívidas com o governo federal feita em 2016, 20 Estados adotaram como contrapart­ida as regras do teto de gastos com pessoal – que impedem o aumento da despesa acima da inflação. No entanto, segundo o Tesouro, 11 desses Estados não cumpriram o prometido. Como punição, terão, em tese, de devolver ao governo federal os valores que eram devidos antes da renegociaç­ão, o que dá algo em torno de R$ 40 bilhões. Não é difícil imaginar que esses governador­es já estejam pensando em maneiras de articular um novo socorro ou perdão. Ajuste de verdade, nem pensar.

Como no filme Casablanca, em que Paris é invocada como sinônimo do lugar onde a felicidade é eterna, os Estados encalacrad­os, que pouco fazem para resolver seus problemas, ficam sempre na esperança de que, como de hábito, a União os salve – afinal, sabem que, haja o que houver, “sempre teremos Brasília”.

LRF, marco civilizató­rio no manejo das contas públicas, parece valer cada vez menos

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