ESTRESSE NO TRANSPORTE PREJUDICA A SAÚDE
Rotina cansativa de longas viagens pode provocar até trombose; cidade ideal prevê serviços a 1 km
Vandersilva Simeão Ribeiro Pedro, de 54 anos, mora na Vila Missionária, zona sul da capital. Da casa dela até o bairro da Bela Vista, no centro, gasta uma hora, em média, para bater o ponto sem atraso, às 6h. Encarregada de limpeza, ela não sabe o que é isolamento social. Passa três horas por dia no transporte público. Sai de casa às 4h para conseguir fazer o trajeto sentada e tentar tomar café da manhã antes de pegar no batente.
A 27 quilômetros da casa de Vandersilva, o pesquisador e professor Pedro Senger, de 25 anos, não demora nem dez minutos para chegar até seu local de trabalho, o Hospital das Clínicas, na zona oeste. Ele mora em Higienópolis, na região central, e faz o trajeto a pé. Sai de casa por volta das 8h, caminha trechos curtos de três avenidas e já está na porta do emprego. Isso quando precisa fazer algum tipo de serviço presencial, o que, para ele, é facultativo.
Moradores da mesma cidade, mas atendidos pelo território de formas totalmente diferentes, Vandersilva e Senger foram convidados pelo Estadão para ilustrar os desafios do próximo prefeito ou prefeita de São Paulo na redução das desigualdades. E em áreas essenciais para a qualidade de vida dos paulistanos: saúde, transporte público, mobilidade, educação, lazer, meio ambiente, zeladoria e segurança pública.
A partir de suas experiências diárias, esta série de reportagens abordará temas obrigatórios para o debate nas eleições 2020, mas com o foco na saúde.
A pandemia do novo coronavírus fez aumentar as diferenças já gritantes na qualidade de vida de Vandersilva e de Senger, afastando ainda mais São Paulo de um conceito de política pública que visa a ofertar aos cidadãos o básico em serviços dentro de um raio de 1 km de casa ou 15 minutos a pé.
Idealizada pelo franco-colombiano Carlos Moreno, professor da Universidade de Sorbonne, em Paris, o conceito de “cidade de 15 minutos” ganhou fama na gestão da atual prefeita da cidade, Anne Hidalgo, reeleita em junho. Tudo pertinho: emprego, moradia, escola, posto de saúde, parque, teatro.
Não é só do trabalho que Senger está perto. Desde que passou a morar na Avenida Angélica, há dois anos, ele não se lembra de quando precisou pegar ônibus. Tem tudo o que precisa à mão. De hospital a parques, supermercados, farmácias e bancos. E a poucos passos de onde mora – exatos 186 – está a estação de metrô Paulista, da Linha 4-Amarela. “Não sinto carência de nada por aqui”, afirma o educador físico.
Bem-estar. Viver em um lugar onde as atividades essenciais estão a 15 minutos de distância a pé ou de bicicleta é tradução de qualidade de vida. Para o urbanista Cândido Malta, especialista em planos urbanos locais, significa ainda bem-estar – e para todos, pobres e ricos.
“O fato de as pessoas mais pobres estarem desempregadas, o fato de a economia não conseguir crescer – e quando cresce, cresce com concentração de renda –, isso tudo faz com que essas desigualdades sociais se perpetuem, prejudicando toda a cidade, toda a população. Temos de reverter esse processo”, afirma o urbanista.
Guardadas as devidas diferenças entre Paris e São Paulo, Malta ressalta que o “privilégio dos 15 minutos” nunca será de todos. São 12 milhões na cidade, espalhados em moradias localizadas, muitas vezes, a 30 km ou mais de distância do trabalho.
Mas atenuar o sofrimento desses deslocamentos, ampliando a gama de transporte para que passageiros ganhem tempo, é obrigação das prefeituras, especialmente das que integram o C40, Grupo da Liderança Climática das Grandes Cidades comandado pelo ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg. É o caso de São Paulo.
“É uma utopia todos morarem perto do trabalho. Não dá para levar todos os empregos do centro para as periferias de São Paulo, assim como não dá para todos da periferia morarem no centro. Só na zona leste da capital são 4 milhões. É por isso que temos de dispor de um sistema de transporte que impeça as pessoas de passarem duas, três horas por dia para ir e voltar do trabalho”, diz Malta.
Riscos. A rotina desgastante de quem mora longe do trabalho ainda pode trazer consequências negativas à saúde. Segundo o médico do tráfego José Montal, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), não ter controle do tempo que se vai gastar no transporte, correndo o risco diário de se atrasar, é fator de estresse e de complicações relacionadas à ansiedade e à perda da capacidade de raciocínio.
Outro risco é o tempo em pé no ônibus ou no metrô. “Imobilizado no transporte, sem movimentar a panturrilha, você dificulta o retorno do sangue ao coração e acaba pagando um preço terrível: varizes, trombose e uma série de outros problemas graves”, diz Montal.
Para completar, a ausência de uma boa noite de sono é comum entre pessoas que passam muito tempo no transporte público. “Se você não dorme bem, termina descontrolando todo o sistema hormonal. E é um prejuízo irrecuperável”, explica o médico. Entre as consequências comuns dessa rotina nada saudável está a possibilidade de se desenvolver hipertensão e diabetes. Vandersilva, que não raramente almoça um sanduíche de mortadela, foi diagnosticada com as duas doenças crônicas.
• Tempo
“Temos de dispor de um sistema de transporte que impeça as pessoas de passarem 2, 3 horas para ir e voltar do trabalho.”
Cândidomalta
URBANISTA
“Imobilizado no transporte, você dificulta o retorno do sangue ao coração e acaba pagando um preço terrível.”
José Montal
MÉDICO