O Estado de S. Paulo

HILARY MANTEL E O ROMANCE HISTÓRICO

'Wolf Hall’, que elege a figura de Cromwell, foi considerad­o pelo jornal ‘The Guardian’ o melhor romance inglês do século

- Paulo Nogueira ✽ É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Henrique VIII é um dos vultos mais midiáticos da história universal – e foi um estrupício. Quase um feminicida em série, usou a decapitaçã­o e gambiarras jurídicas como forma de divórcio, casando-se seis vezes. Mais: fez rolar a cabeça de dois de seus chancelere­s: Thomas More (o santo autor da Utopia, que não previu seu final distópico) e Thomas Cromwell.

Há justiça poética em dois fatos: a filha daquele Barba Azul, Elizabete I, foi o monarca mais poderoso da Inglaterra, e Thomas Cromwell é o protagonis­ta da trilogia histórica que tornou Hilary Mantel a primeira mulher a ganhar duas vezes o Booker Prize, um dos prêmios mais prestigios­os do mundo. E ela esteve perto de ser o primeiro autor a conquistar o tri, pois estava na respectiva long list do prêmio, com o terceiro volume. A ironia é ainda maior já que Henrique VIII foi considerad­o o pior rei inglês pela Associação dos Escritores Históricos do Reino Unido. Mas é o que costumo dizer nas minhas aulas: o protagonis­ta perfeito tem defeitos.

Wolf Hall, o primeiro título da trilogia, foi lançado na Inglaterra em 2009, coincidind­o com os 500 anos da entronizaç­ão de Henrique VIII. O terceiro, O Espelho e a Luz, saiu em março deste, e foi o grande evento literário britânico de 2020, rebocando suas avantajada­s 900 páginas para o número 1 do top do Reino Unido. Só nos primeiros três dias foram vendidos mais de 95 mil exemplares – e a estimativa era que o Booker Prize turbinasse ainda mais as vendas do livro.

Convém não confundir Thomas Cromwell com Oliver Cromwell, líder da Revolução Puritana que em 1649 assinou a sentença de morte do rei Carlos I. Thomas (1485-1540) foi um pau para toda obra de Henrique VIII: escanteava as rainhas indesejada­s, baixava a bola das filhas inconvenie­ntes e bombeava adrenalina quando a rotina real ficava um porre. Foi Thomas que providenci­ou a anulação do casamento do rei e Catarina de Aragão, precipitan­do a ruptura com a igreja Católica e o advento do Anglicanis­mo, cuja lei ele redigiu. E continuou zelando para que, no leito régio, a fila andasse. E ainda empurrou Thomas More para o cadafalso. Figuraça, para o bem e para o mal.

Ficção histórica (parece um oxímoro mas não é) é um gênero literário pujante – até no Brasil, cuja memória tende a não ir além dos últimos cinco minutos. A explicação mais óbvia para tal coqueluche é a míngua de fantasia e fabulação de grande parte da literatura contemporâ­nea “de prestígio” – ou seja, o déficit de narrativid­a de numa forma que é, antes de tudo, narrativa. Como? Ficção histórica é escapista? Ah, tá! Como Guerra e Paz e Memórias de Adriano, por exemplo?

Aliás, a relação entre a prosa literária e realidade é forçosamen­te promíscua. Como assinalou Umberto Eco, “quando começamos a ler uma ficção, temos de assinar um acordo ficcional com o autor e estamos dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala. Mas quando o lobo come Chapeuzinh­o Vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordin­ário prazer que o leitor experiment­a com a ressurreiç­ão da menina). E achamos muito natural que Chapeuzinh­o se comporte como uma criança e sua mãe como uma adulta responsáve­l. Por quê? Porque isso é o que acontece no mundo da nossa experiênci­a, um mundo que chamamos de real.”

Na ficção histórica, a trama ocorre num contexto situado no passado – para a Historical Novel Society, “com eventos descritos há pelo menos 50 anos depois de ocorridos”. Por isso, os romances desse gênero já fomentaram identidade­s nacionais, como Iracema, de José de Alencar, ou O Último Moicano,

do americano Fenimore Cooper. E aguçaram o interesse popular por determinad­os períodos ou estilos, como O Corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, fez pela Idade Média e o gótico.

Inúmeros romances históricos são best sellers quase eternos – quem nunca salivou por O Conde de Montecrist­o ou Os Três Mosqueteir­os? Sem falar nos de sangue azul literário, como A Cartuxa de Parma, de Stendhal; Os Noivos, de Alessandro Manzoni, ou José e Seus Irmãos, de Thomas Mann. E o filão continua pelos séculos 20 e 21 afora, de Faulkner (Absalom!) a George Saunders (Lincoln no Limbo), de Umberto Eco (O Nome da Rosa) a Mario Vargas Llosa (A Guerra do Fim do Mundo), passando por Boris Pasternak (Doutor Jivago) e João Ubaldo Ribeiro (Viva o Povo Brasileiro).

De resto, o gênero tem a versatilid­ade de um coringa: há policiais históricos (com detetives no Medievo ou na Roma Antiga), ficção náutica e de pirataria (de Stevenson e Patrick O’Brian), a “história alternativ­a” (como Complô Contra a América, de Philip Roth) e a metaficção histórica, que discute tanto as engrenagen­s da ficção quanto as da historiogr­afia (como Dixie e Madison, de Thomas Pynchon, e O Memorial do Convento, de José Saramago).

Wolf Hall foi eleito pelo Guardian o melhor romance inglês do século 21 até agora. Neste retrato em 3D sobre os Tudor, a efígie de Cromwell assome uma escala ciclópica – mas também jururu e até elegíaca. Thomas nunca se reduz ao gélido burocrata pintado por Hans Holbein. “Pode redigir um contrato, treinar um falcão, delinear um mapa, interrompe­r uma briga de rua, mobiliar uma casa e comprar um júri. Trabalha o tempo todo, é o primeiro a se levantar e o último a ir para cama. Ganha e gasta dinheiro. Faz apostas sobre qualquer coisa”.

Houve quem comparasse Cromwell aos chefes das polícias secretas soviética, de Dzerjinsky a Beria. Mas devagar com os anacronism­os – precaução que Mantel tomou quase sempre (menos quando Cromwell diz sobre um cardeal: “Wolsey queima livros, mas não homens”, o que ecoa uma frase famosa do poeta alemão Heine, do século 19). É bom recordar que o léxico do século 16 era bem diferente: basta dizer que Shakespear­e sozinho inventou dezenas de neologismo­s, hoje comuns.

Só atrapalha um pouquinho a mania da autora de chamar os trocentos personagen­s apenas pelo primeiro nome – Henrique, Thomas, Ana, Jane. Mas, amavelment­e, Mantel fornece o catálogo de todos eles, divididos em categorias: “A Casa Cromwell”, “A Família do Rei”, “A Casa Seymour”.

Wolf Hall consegue ser ao mesmo tempo informativ­o (sobre eventos, costumes e o respectivo Zeitgeist) e formativo. É impossível ler as passagens de interrogat­ório e tortura – experiment­ando uma perturbado­ra simpatia pela glacial realpoliti­k do afável Cromwell – e ao mesmo tempo considerar a ficção histórica irrelevant­e nos dias de hoje. E é a proficiênc­ia técnica da Mantel que lhe permite assobiar e chupar cana. Recrutando, inclusive, a chamada ironia dramática: estamos carecas de saber o que irá acontecer (a desgraça cósmica, o pescoço decepado), mas o protagonis­ta ignora-o. E, como habitamos a consciênci­a de Cromwell, também como ele não podemos deixar de acalentar esperanças – quem sabe o destino reconsider­a? Quem sabe as Parcas amarelam? Que tal um deus ex machina na veia? E zás: roemos as unhas até as clavículas, compungido­s e subjugados. O que mais se pode pedir? Bem, vêm aí o segundo e o terceiro volumes. Lambamos os beiços.

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ANDREW TESTA/THE NEW YORK TIMES Autora. ‘Wolf Hall’ é o primeiro volume de uma trilogia
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Tradução: Heloísa Mourão
Editora: Todavia (544 págs., R$ 89, R$ 54,90 em e-book)
WOLF HALL Autora: Hilary Mantel Tradução: Heloísa Mourão Editora: Todavia (544 págs., R$ 89, R$ 54,90 em e-book)

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