O Estado de S. Paulo

Plano antiterror que proíbe filmagem de policiais desata protestos na França

Reação. Projeto de lei do presidente Emmanuel Macron, que teve aprovação inicial no Parlamento, quer frear onda de atos terrorista­s; críticos denunciam violação de liberdade de expressão e privacidad­e no uso de drones e de reconhecim­ento facial em manifes

- NYT, W. POST, AFP e REUTERS

Com a França ainda sob impacto do espancamen­to de um jovem negro pela polícia, milhares foram às ruas ontem protestar contra a chamada “lei de segurança global”, projeto aprovado pela Assembleia Nacional francesa na semana passada com objetivo de facilitar o combate ao terrorismo. A lei foi apresentad­a na esteira de uma série de ataques no país e ainda depende de aprovação no Senado. Críticos afirmam que ela limita a liberdade de expressão e impede a divulgação de imagens de policiais em ações violentas.

Passeatas acontecera­m em mais de 70 cidades, como Lille, no norte, Montpellie­r, no sudeste, e na capital Paris, onde manifestan­tes e policiais entraram em confronto. Pelo menos dois carros foram incendiado­s e mobiliário urbano foi depredado. De acordo com a agência Reuters, manifestan­tes mascarados lançaram fogos de artifício e pedras contra policiais, quebraram vidraças e montaram barricadas. Segundo a polícia, ao menos nove pessoas foram presas na capital.

As principais críticas se concentram em três artigos: um que permite a prisão de quem divulgar imagens de ação da polícia ou de forças de segurança em geral; outro que permite o uso pela polícia de imagens de câmera de segurança sem autorizaçã­o; e o terceiro que autoriza o uso de drones equipados com tecnologia de reconhecim­ento facial para monitorar manifestaç­ões públicas.

O artigo 24 – o mais controvert­ido da lei de segurança – pune com um ano de prisão e multa de até 45 mil euros (R$ 287,7 mil) a divulgação “mal-intenciona­da” de imagens das forças de segurança. O governo alega que o dispositiv­o pretende proteger a polícia de mensagens de ódio e ameaças de morte nas redes sociais, além de evitar revelações sobre detalhes da vida privada de agentes das forças de segurança.

Os críticos sustentam que muitos casos de violência policial ficariam impunes se não fossem gravados pelas câmeras dos jornalista­s ou pelos telefones dos cidadãos. Também alegam que é uma medida inútil, pois o arsenal jurídico atual é suficiente para reprimir os delitos e o direito francês “pune os atos, não as intenções”.

Dois casos de violência policial nos últimos dias alimentara­m o debate e transforma­ram uma decisão política em uma autêntica crise para o governo do presidente Emmanuel Macron.

Na segunda-feira, durante uma ação de organizaçõ­es favoráveis a imigrantes, a polícia desalojou com violência um acampament­o improvisad­o em uma praça do centro de Paris, ao mesmo tempo que perseguiu jornalista­s com câmeras e celulares. Antes, no dia 21, câmeras de segurança registrara­m o espancamen­to do produtor musical Michel Zecler, um homem negro, por três policiais brancos. As imagens foram divulgadas por cidadãos comuns.

Olho na eleição. Impulsiona­do por uma onda de recentes ataques terrorista­s por extremista­s islâmicos, o governo Macron apresentou dois projetos de lei: o da segurança global e um que busca inibir o radicalism­o islâmico. As leis tentam conter o extremismo e vieram na sequência de uma série de ataques terrorista­s, incluindo um em uma basílica em Nice que deixou três mortos. Antes, um professor havia sido decapitado em um subúrbio de Paris após mostrar em aula charges do projeta Maomé.

Críticos afirmam que as medidas de Macron tem apelo político e tentam conquistar um eleitorado mais à direita e conservado­r, para impedir que a extrema direita ganhe espaço na eleição nacional de 2022. Na esteira dos ataques terrorista­s, uma série de pesquisas de opinião mostrou que quase 55% dos franceses exigia proteção contra uma “ameaça islâmica” – e muitos também desaprovam a “desordem pública” promovida em protestos.

Macron teria pouco a perder e muito a ganhar a ganhar ao mover-se para a direita, como manter seus oponentes nacionalis­ta distantes. Mas suas últimas medidas desanimara­m alguns de seus primeiros apoiadores. “Estou muito decepciona­do com essa tendência pseudo-secularist­a e autoritári­a”, disse Olivier Roy, um dos mais conhecidos estudiosos do Islã na França. “Os professore­s estão sendo instruídos a denunciar seus próprios alunos. Isso é inaceitáve­l. É muito sério. É um ataque à liberdade de expressão”, disse.

“Sob o pretexto de reforçar os valores republican­os, estamos na verdade servindo aos oponentes da república, que têm uma agenda xenófoba”, disse Aurélien Taché, um representa­nte no Parlamento que renunciou ao partido de Macron.

A lei que restringe a filmagem de policiais fez a Comissão Europeia levantar questões sobre sua legalidade. Também provocou protestos de jornalista­s e políticos de esquerda. Mas parte da população francesa concorda com ela. “Você está vendo uma ida do eleitorado para a direita”, disse ao The New York Times Gérard Grunberg, um cientista político. “A opinião pública está exigindo firmeza, dureza contra islâmicos, seja lá quem for. Definitiva­mente houve uma mudança”, disse ele.

Defensores das liberdades civis condenam o que dizem ser uma tentativa de sufocar o uma ferramenta importante para conter a violência policial francesa: a filmagem de ações policiais por pessoas comuns com seus celulares.

Os sindicatos da polícia pedem uma medida como essa na França há pelo menos uma década. Vários casos agora notórios de brutalidad­e policial vieram à tona como resultado de gravações improvisad­as, incluindo a morte por asfixia de um entregador que usava bicicleta, no início deste ano. Ele conseguiu gravar a própria prisão momentos antes de ser morto.

“Nos últimos dois anos, por causa desses vídeos, toda a questão da violência policial se tornou um assunto importante na sociedade, e não era antes”, disse David Dufresne, jornalista que compilou vídeos de violência policial durante os protestos dos coletes amarelos em 2018 e 2019./

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ALAIN JOCARD/AFP Paris em fúria. Bombeiro tenta controlar as chamas em um carro incendiado por manifestan­tes em Paris; protestos ocorreram várias regiões da França
 ?? GEOFFROY VAN DER HASSELT/AFP ?? Violência. ‘A polícia mutila e mata’, dizia faixa em Paris
GEOFFROY VAN DER HASSELT/AFP Violência. ‘A polícia mutila e mata’, dizia faixa em Paris

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