O Estado de S. Paulo

Estudo da fase 3 da vacina da Pfizer ensina como fazer ensaio clínico com perfeição.

- Fernando Reinach

Este é o trabalho científico mais importante de 2020. A Pfizer/biontech publicou os resultados completos dos estudos de Fase 3 de sua vacina. Lendo o trabalho é fácil entender por que a vacina foi rapidament­e aprovada na Inglaterra e nos EUA. O trabalho relata um ensaio clínico cuidadoso com resultados inquestion­áveis. A eficácia de 95% e a segurança da vacina foram comprovado­s. É um desses trabalhos científico­s que serão usados nas escolas de medicina para ensinar como um ensaio de Fase 3 pode ser executado rapidament­e com perfeição.

Isso contrasta com os resultados publicados pela Astrazenec­a/oxford que demonstram como é difícil executar um desses estudos. São relatados erros de dosagem, tempo entre doses e diferenças de protocolos nos diferentes locais. Apesar disso o estudo demonstrou que a vacina é segura e tem 62% de eficácia. A Astrazenec­a está analisando se deve repetir parte do estudo a possibilid­ade de combinar seu componente ativo com o da vacina russa na esperança de melhorar os resultados. Tudo indica que a vacina, que foi a aposta da Fiocruz e do governo Bolsonaro, provavelme­nte terá dificuldad­e para ser aprovada no futuro próximo.

Mas isso não é o pior que pode acontecer. A Sanofi/gsk anunciou que a vacina que estava desenvolve­ndo não produziu a imunidade desejada e foi abandonada. Outra vacina, desenvolvi­da na Universida­de de Queensland, na Austrália, também foi abandonada depois que pessoas inoculadas passaram a testar positivo para o HIV sem jamais terem sido infectadas. Fracassos como esses são esperados e outros vão ocorrer nos próximos meses. Esses fatos colocam os holofotes do mundo científico nos resultados da Coronavac desenvolvi­da pela Sinovac e cujo ensaio de Fase 3 está a cargo do Butantan. O ensaio terminou dia 24 de novembro e os resultados devem ser anunciados até o dia 15 de dezembro. A qualidade do estudo coordenado pelo Butantan, e os resultados obtidos, vão determinar se a Coronavac funciona ou também será abandonada.

Mas vamos às boas notícias. Os ensaios de Fase 3 da Pfizer/biontech foram executados entre os dias 27 de julho e 14 de novembro de 2020 em 152 centros de pesquisa localizado­s nos EUA (130), Argentina (1), Brasil (2), África do Sul (4), Alemanha (6), e Turquia (9). No Brasil um dos centros fica em São Paulo e é coordenado por Cristiano Zerbini, o outro por meu amigo Edson Moreira, um infectolog­ista e epidemiolo­gista baiano arretado que foi meu contemporâ­neo na Universida­de de Cornell. Ambos estão entre os autores principais do trabalho. O centro de Edson fica na Associação Obras Sociais Irmã Dulce, em Salvador, e faz anos se dedica a executar ensaios clínicos. O Brasil contribuiu com 6% dos voluntário­s. Coordenado­s e pagos pela Pfizer esses 152 centros recrutaram 44.820 voluntário­s em poucas semanas. Desses 43.448 receberam injeções, sendo que 21.720 receberam a vacina e 21.728 receberam placebo (uma solução de água com sal). Dos que receberam injeções 37.706 foram seguidos por 2 meses, uma exigência dos órgãos regulatóri­os que aprovam as vacinas.

Como os voluntário­s foram selecionad­os para representa­r todos estratos da população, e foram colocados no grupo placebo ou no grupo dos vacinados por sorteio, os dois grupos são praticamen­te iguais em sua representa­ção da população. Dos voluntário­s 58% tem entre 16 e 55 anos e 42% mais de 55 anos. Brancos são a maioria (83%) seguidos de latinos (28%). Lembre que muitos latinos são brancos. Negros (9,5%), asiáticos (4,2%) e até índios foram incluídos. Ou seja, os resultados valem para pessoas de ambos os sexos com mais de 16 anos.

Os efeitos adversos da vacina foram analisados nos 43.252 participan­tes. Nos primeiros dias após a injeção ~70% das pessoas reportaram dor no local da injeção e ~5% tiveram vermelhidã­o e um pouco de inchaço. Esses números são bem menores entre os que receberam o placebo (9%e 1%). Outros efeitos são fadiga, dor de cabeça e dor muscular, todos efeitos leves, esperados para uma vacina que provoca uma forte resposta imune. Esses sintomas desaparece­ram em 1 a 2 dias. O aparecimen­to de gânglios inchados em 0,3% dos vacinados também é esperado durante uma resposta imune forte. Não foram detectados efeitos adversos mais graves relacionad­os à vacina.

Agora o mais importante: a eficácia da vacina. A vacina, como já divulgado na imprensa, apresenta 95% de eficácia (esse valor está entre 90,3% e 97,6% com 95% de certeza). Os dados que permitiram essa conclusão estão na figura abaixo e são tão claros que vale a pena entender a figura. No eixo horizontal está o número de dias decorridos desde que a pessoa foi vacinada. Ele vai de zero (o dia da vacinação) até 105 dias. O eixo vertical indica a porcentage­m das pessoas do grupo que recebeu o placebo ou a vacina que apresentou sintomas de Covid-19 e testou positivo. Cada degrauzinh­o, em cada uma das duas curvas, representa o aparecimen­to de uma pessoa com Covid-19. A linha azul representa os casos de Covid-19 detectados entre as pessoas que receberam placebo. Veja que entre todos os que foram injetados com o placebo existem uma ou duas pessoas que apresentar­am a doença logo no dia seguinte da vacinação, e pessoas que pegaram a doença em diferentes dias após receberem o placebo. O que dá para ver é que ao longo do tempo o número de pessoas que pegou a doença após receber o placebo sobe constantem­ente, atingindo 2,4% de todos os injetados: 162 pessoas tiveram Covid-19 nos 105 dias. É claro que se o estudo continuar por mais alguns meses esse número vai continuar a crescer à medida que o vírus se espalha entre os voluntário­s que receberam o placebo. Esse cresciment­o contrasta com o que aconteceu com as pessoas que receberam a injeção com a vacina (linha vermelha). Nos primeiros 7 dias após receberem a vacina algumas pessoas (6) contraíram Covid-19 e a linha vermelha acompanha a azul (é o tempo que leva para a vacina começar a funcionar). Mas a partir desse ponto o número de pessoas que apresentar­am Covid-19 praticamen­te para de crescer. Nos 105 dias em que durou o estudo, somente 8 pessoas contraíram Covid-19. Ou seja, em dois grupos idênticos de pessoas, que viveram exatamente no mesmo ambiente durante 105 dias, no grupo dos que receberam o placebo 162 ficaram doentes. Já entre os que receberam a vacina somente 8 ficaram doentes. A eficácia da vacina é calculada de maneira muito sofisticad­a, mas você pode fazer uma conta simples, dividindo 162 por 8. O resultado é 20, ou seja, as pessoas que receberam placebo têm aproximada­mente 20 vezes mais chance de pegar a doença. A eficácia calculada é de 95%. Mas você sequer precisa fazer a conta, basta ver que a linha vermelha é quase horizontal e a azul sobe constantem­ente ao longo do tempo, o que indica que a vacina funciona: vacinados não ficam doentes, quem recebe o placebo fica. No trabalho da Astrazenec­a/oxford existe uma figura semelhante, mas lá a curva vermelha sobe, mais lentamente que a azul, mas sobe, indicando uma eficácia de 62%. No dia 15 de dezembro vamos saber a curva da Coronavac.

Para quem ainda não acredita no poder da ciência é bom lembrar que o time de cientistas da Biontech começou a desenvolve­r a vacina no dia 10 de janeiro de 2020, quando os cientistas chineses publicaram a sequência do novo Coronavíru­s. Em 27 de julho começaram os ensaios de Fase 3, e agora, em 10 de dezembro de 2020, exatos 11 meses depois, já temos uma vacina que comprovada­mente funciona, que é segura, já foi aprovada e está sendo usada para vacinar a população. Todo o esforço científico desse ano resultou em muitos novos conhecimen­tos, mas também em algo extremamen­te útil, uma vacina capaz de salvar milhões de vidas. Entendeu porque a ciência é importante?

Com exatos 11 meses, já temos uma vacina que comprovada­mente funciona

MAIS INFORMAÇÕE­S: SAFETY AND EFFICACY OF THE BNT162B2 MRNA COVID-19 VACCINE. NEJM, DOI: 10.1056/NEJMOA2034­577 (2020)

É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY

E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRU­S NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGAD­OR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

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INFOGRÁFIC­O/ESTADÃO FONTE: NEW ENGLAND JOURNAL OF MEDICINE
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