Presença do blefe na atualidade política brasileira
Nas condições em que se travou a disputa no segundo turno da eleição presidencial de 2018, era mesmo difícil imaginar que chegaríamos a 2020 com um governo sério e competente.
Agora, porém, somos forçados a admitir que a situação é bem pior que a inicialmente prevista, e não só por causa da pandemia. Os desafios, tanto na área econômica como na sanitária, são aterradores, e não há como conceber um alívio substancial nos próximos meses.
A vitória de Jair Bolsonaro foi a consumação de um blefe meticulosamente construído. Seu programa era um amontoado de metas altissonantes – como convém a um bom blefe –, grudadas entre si pelo visgo da malícia. Naquele amontoado desconexo e irrealista destacava-se a erradicação da “velha” política, ponto que retomarei adiante. Mas o que realmente interessava, naquele momento, era apresentarse como o polo antipetista, o resto era recheio.
O blefe tem uma longa história na vida política brasileira. Seu marco cronológico clássico foi a eleição de Jânio Quadros em 1960 e sua renúncia em agosto de 1961. A vassoura, marca registrada do personagem que criou, já sugeria a intenção de combater a corrupção e a “velha” política – podendo nesse aspecto ser vista como uma avant-première do bolsonarismo. Mas o melhor estava por vir. Seria a renúncia, em agosto de 1961, comunicada em carta ao Congresso. Jânio imaginou que os parlamentares passariam vários dias discutindo a carta, engalfinhando-se enquanto o País entrava em convulsão. Dessa forma, ele voltaria ao Planalto nos braços do povo, com poderes ampliados. Mas o Congresso não foi na conversa e o homem da vassoura ficou a ver navios.
Em 1963, fazendo das tripas coração para exercer de fato a Presidência, João Goulart oferecia ao Brasil o banquete das
“reformas de base”, uma promessa de reformar o Brasil de alto a baixo. Enquanto isso, Leonel Brizola ameaçava o Congresso (“reforma agrária na lei ou na marra”) e fazia soar seu estribilho: “Cunhado não é parente, Brizola para presidente”. Vinte e poucos anos depois seria a vez de José Sarney. Seu Plano Cruzado elevou-o aos píncaros da popularidade e ele optou por ficar lá, em vez de desfazer as ilusões subjacentes ao congelamento de preços e salários. A queda, como se sabe, sempre equivale à altura do galho.
Quem hoje monitora o drama político brasileiro logo percebe que a Bolsonaro só o que interessa é a reeleição em 2022. Seu ministro da Saúde parece um aprendiz de ventríloquo, o da Educação ainda não disse a que veio e o das
Relações Exteriores tornouse um órfão de Donald Trump. Nesse quadro, a pandemia não deixa de ser útil ao presidente, pois disfarça o vazio de seu governo e lhe fornece os adereços de que necessita para se manter visível na cena pública.
Seria tudo muito engraçado se não fosse trágico – a “gripezinha” já se aproxima de 200 mil óbitos – e perigoso, porque o coquetel covid + crise fiscal + desgoverno pode levar o País a um grave retrocesso.
Retrocesso: peço licença para inserir aqui algumas breves considerações sobre essa palavra. O apolitismo brasileiro é de tal ordem que muitos, quiçá a maioria de nossos compatriotas imagina que o regime democrático existe num estado estacionário. Que não vai para a frente nem para trás. Não vai para a frente, segundo o discurso mais batido, porque nenhum político presta. Vai para trás? Talvez, mas, e daí? Para alguns a questão
nem faz sentido, pois estão convencidos de que não temos, nunca tivemos e nunca teremos uma “verdadeira” democracia. Outros, só para exercitar um discurso bilioso, e outros falando a sério, apregoam que um retrocesso total seria na verdade a solução, pois qualquer ditadura seria melhor que a contrafação democrática que nos rege. Curiosamente, essa conversa é por sua vez um blefe, pois quem aí se detém nunca dedica sequer meia hora a uma reflexão séria sobre o que está dizendo. A ascensão de Hitler e o massacre de milhões foram a solução para os problemas (cuja gravidade ninguém desconhece) da Alemanha do entreguerras? Sem ir tão longe, Hugo Chávez e Nicolás Maduro livraram a Venezuela de seus difíceis problemas?
De fato, aqueles que não dispõem de meia hora para refletir sobre essas questões não precisam se preocupar com um possível retrocesso. Permito-me, porém, lembrarlhes que a ditadura benigna com que sonham, ou que se dispõem a tolerar, não pode ser obra de amadores. O antigo molde latino-americano, aquele que conhecemos tão bem, já não basta. Somos um país de 220 milhões de habitantes, com um potencial de conflito gigantesco e até com bandos de cangaceiros high-tech, como os que dias atrás atacaram e aterrorizaram cidades em Santa Catarina, em São Paulo e no Pará. Um regime ferreamente totalitário como o da China? Há quem aprecie.
Seja como for, convençamse de que nenhuma varinha de condão nos vai tirar do angu em que nos encontramos. Nenhum passe de mágica, nenhum estalar de dedos vai oportunamente nos transportar para o Primeiro Mundo.
O coquetel covid + crise fiscal + desgoverno pode levar o País a um grave retrocesso