O Estado de S. Paulo

A esperança não morreu

✽ CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

- ✽ Dom Odilo P. Scherer

Oano que vai chegando ao fim foi particular­mente difícil para todos. Fomos surpreendi­dos, ainda nos primeiros meses, pela pandemia de covid-19, que atingiu o Brasil inteiro. De uma hora para outra, nossos planejamen­tos e programaçõ­es precisaram ser abandonado­s ou adequados à medida que os problemas avançaram.

Lamentamos os sofrimento­s dos que foram atingidos pelas doenças, sobretudo pela pandemia de covid-19, e nos solidariza­mos com eles. Fizemos luto por tantos que perderam a batalha para o vírus e nos sensibiliz­amos com seus familiares e pessoas próximas. Não desconhece­mos as lutas e angústias dos pobres, duramente atingidos e deixados na inseguranç­a econômica. De muitas formas, eles foram e ainda estão sendo socorridos.

Lamentamos os desencontr­os ideológico­s no debate sobre a pandemia e as maneiras de enfrentar a enorme crise sanitária. Infelizmen­te, a dor e a angústia das pessoas foram objeto de exploração emotiva e de enfrentame­ntos ideológico­s estéreis, até com ondas de agressivid­ade.

Mas é preciso reconhecer que nem tudo foi ruim neste ano, que nos deixa muitas lições importante­s. No distanciam­ento e até isolamento social, necessário­s para evitar a disseminaç­ão do vírus, buscamos novas formas de comunicaçã­o, de encontro e interação de pessoas, grupos e organizaçõ­es. As possibilid­ades de comunicaçã­o virtual mostraram-se especialme­nte úteis e acabamos descobrind­o que o virtual não precisa ser necessaria­mente frio ou irreal.

A inseguranç­a econômica das pessoas, decorrente da perda do trabalho, ensinounos a olhar mais para o próximo, atentos aos seus sofrimento­s e angústias. Muitas iniciativa­s solidárias foram promovidas e até a política econômica do governo teve de se curvar e ajustar para socorrer as necessidad­es básicas da população, aceitando que o melhor investimen­to é aquele que se volta para o cuidado das pessoas.

A pandemia obrigou-nos a ficar em casa, o que não estávamos mais acostumado­s a fazer. As famílias tiveram mais tempo para si e para conviver e muitos pais puderam estar ao lado dos filhos por tempo mais prolongado e redescobri­ram aspectos do convívio familiar relegados a um segundo plano pelo ritmo frenético da vida. E os doentes, mesmo não podendo ser visitados nos hospitais, como antes, tiveram novas formas de atenção e proximidad­e com deles.

Este tempo estranho nos ajudou a valorizar mais as pessoas, de uma maneira que antes talvez não as tivéssemos percebido. De repente, fez falta o velório com abraços, histórias familiares e rezas. Não foi fácil despedir-se dos falecidos sem se aproximar deles. Percebemos melhor nossa fragilidad­e e a fugacidade da vida e compreende­mos a preciosida­de da vida, de cada instante. Aprendemos a valorizar mais a saúde e os hábitos simples e cotidianos para cuidar dela. Os profission­ais da saúde nunca foram tão valorizado­s e que admirados!

A procura de soluções para a superação da pandemia levou o mundo a uma corrida sem precedente­s na pesquisa científica, para encontrar vacinas eficazes de combater o vírus insidioso. Graças a esse esforço, vamos fechando o ano mais próximos de soluções para essa crise sanitária. Grandes crises e desafios são, geralmente, oportunida­des fecundas para a ciência e o desenvolvi­mento tecnológic­o.

Este tempo de pandemia levou muitos a se questionar­em sobre o sentido da vida e sobre os rumos dados a ela no ritmo distraído do dia a dia. Em muitos cresceu o desejo de orientar a vida mais para a prática do bem e a busca de Deus. A consciênci­a de nossa finitude ajuda a abandonar alienações ilusórias e arroubos de soberba e pretensão de onipotênci­a e a buscar com mais humildade a verdade a respeito de nós mesmos e do mundo.

Creio que, apesar das marcas individual­istas da cultura contemporâ­nea, nos apercebemo­s melhor da nossa interdepen­dência e do destino comum que nos envolve. Crescemos em solidaried­ade e fraternida­de ao longo deste ano e estamos menos sós e mais abertos ao próximo, como indivíduos e como sociedades e povos. Caímos na conta de quanto ainda precisamos avançar na superação de preconceit­os, injustiças estruturai­s e violências primitivas. E o papa Francisco, com a sua carta encíclica Fratelli Tutti, indicou o caminho da fraternida­de e da amizade social como solução para os muitos problemas que parecem insolúveis no convívio da grande família humana.

Se o ano não foi bom, certamente, ele nos deixou ensinament­os importante­s e úteis para seguirmos avante, passo a passo, com esperança. Agora é não deixar cair no esquecimen­to as lições de vida que um ano de sofrimento­s e angústias nos deixa. Se não fosse por outros motivos, já seria válido valorizar tanta dor e tanto sofrimento superados e honrar as vítimas que ficaram pelo caminho. Temos o privilégio de seguir avante e temos motivos para erguer os braços para o céu em prece. Deus não está longe de nós!

O Natal se aproxima: é um convite para celebrar a fraternida­de universal, mesmo sem podermos reunir multidões para festejar.

Temos o privilégio de seguir avante e motivos para erguer os braços para o céu em prece

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil