A MORADIA POPULAR NA VILA VIZINHA DO PODER
Tombada, Vila Planalto, vira símbolo das casas populares no coração do DF
Estabelecida bem no meio do caminho entre os palácios do Planalto e da Alvorada, onde trabalha e mora o presidente da República, a Vila Planalto é símbolo da moradia popular na capital federal. O bairro vizinho das residências do poder se constituiu numa resistência ao projeto arquitetônico de Brasília e à pressão da especulação imobiliária que transformou o antigo acampamento formado para receber os operários da construção da cidade num local repleto de restaurantes e, mais recentemente, de aluguel de quitinetes.
Tombada pelo Patrimônio Histórico do Distrito Federal em 1988, a Vila foge das características modernistas desenhadas pelo urbanista Lucio Costa que marcam Brasília. O acampamento operário surgiu em 1957 e deveria ter sido desmontado depois da inauguração da capital. Os moradores resistem até hoje. A maioria dos cerca de 1.200 lotes não tem escritura ou registro de propriedade e restam não muito mais de dez casas de madeira dos 22 acampamentos originais.
As antigas construções de madeira, a marca do local, foram substituídas por casas de alvenaria, algumas de alto padrão, e pequenos prédios para as quitinetes, totalmente fora das regras do tombamento, com aluguel de R$ 655 a R$ 1 mil. Por muitos anos, foi proibida a construção de casas de alvenaria e a infraestrutura foi minguando para afastar moradores e impedir o crescimento do local.
“Conseguimos um documento para fazer alvenaria. Não podia fazer dois andares e depois muita gente começou a fazer”, conta a copeira Silvana Matos, de 45 anos. Filha de uma pioneira, ela só não nasceu no bairro porque a mãe foi para a cidade natal, Pirapora, em Minas Gerais, para dar à luz. Hoje, Silvana mora com a família no lote da mãe, que abriga cinco casas. A dela, a da mãe e dos irmãos. Ela lembra que, antes da permissão para a construção de casas de alvenaria, a família sofria com doenças provocadas por ratos que infestavam a região. “Morar bem é quem mora hoje na alvenaria”, diz.
A casa da família era construída com tábuas velhas que o pai, operário, trazia das obras. Até hoje, a família não recebeu a escritura do lote. Silvana diz que a mãe chegou a fazer empréstimo no banco para conseguir reunir a documentação cobrada pelo governo do Distrito Federal para liberar a escritura. “Querem muitos documentos. Pedimos o registro e não aceitaram. A gente continua morando aqui. Quem vai tirar a gente? Ninguém pode tirar, porque temos como provar.”
Filha dos primeiros moradores da Vila Planalto, a escritora e líder comunitária Leiliane Rebouças diz que a descaracterização do bairro reflete o desinteresse do Estado em preservar a história dos operários que trabalharam na construção de Brasília. As poucas casas remanescentes, que são os únicos exemplares da arquitetura modernista em madeira, estão deterioradas, quase que completamente destruídas, mesmo sendo consideradas de preservação rigorosa num decreto de tombamento que já tem mais de 30 anos. “A história de Brasília está virando ruínas”, diz a escritora, que aos 10 anos escreveu uma carta ao presidente da República na época, José Sarney, contando como viviam os moradores com o risco iminente de serem expulsos de sua casa.
Numa cerimônia na Praça dos Três Poderes, a menina conseguiu entregar a carta ao presidente, que foi respondida. Anos depois, a Vila foi tombada, Leiliane virou escritora e os moradores continuam resistindo à expulsão. A pandemia durante o aniversário de 60 anos da capital atrapalhou os planos do lançamento do livro Vizinhos do poder: história e memória da Vila
Planalto.
Como mostrou o Estadão ao longo desta série de reportagens que se encerra hoje, desordens urbanísticas e ausências do Estado à parte, os brasileiros buscam transformar moradias precárias ou construídas em áreas de risco em “lares”, uma tradução para a arte de morar, algo que vai, muitas vezes, além da realização do sonho da casa própria. Por necessidade, eles têm uma receita própria de viver a sensação de bem-estar.
O isolamento social motivado pela pandemia trouxe impactos também para a Vila Planalto, que tem nos restaurantes sua principal fonte de renda. Assim como em outros lugares do País, muitos moradores se recusam a usar máscara na rua, mas ainda há solidariedade. “Alguns comerciantes têm sido cuidadosos, medem a temperatura e deixam álcool em gel à disposição”, diz Leiliane. “E os donos de quitinetes protelaram o aluguel de muita gente que ficou sem poder pagar.”
Desigualdade. Se por um lado escancarou a desigualdade social, retratada nas moradias sem saneamento e com cômodos pequenos para tanta gente, por outro a pandemia provocou um aumento na procura por material de construção. Parte desse movimento, explica o presidente da Câmara Brasileira da Construção Civil (CBIC), José Martins, reflete “uma renda a mais” obtida com o auxílio emergencial aprovado pelo Congresso para socorrer os mais vulneráveis e informais.
“Já está tendo falta de material”, diz o presidente da CBIC. Além do dinheiro do auxílio, a compra “por impulso”, que ocorria em tempos normais sem o isolamento social, diminuiu. Itens menos essenciais acabaram sendo deixados de lado. O resultado: sobra dinheiro para os brasileiros melhorarem a casa. “As pessoas perceberam a importância da casa. Essa é a grande mudança comportamental que veio com a pandemia”, ressalta.
Martins destaca que muitos brasileiros também aproveitam os juros mais baixos para buscar a casa própria e fugir do aluguel. A venda de imóveis para a população mais pobre está sendo retomada depois do auge da pandemia.
Enquanto a política para habitação popular ainda espera uma definição, o momento de mínima histórica da taxa de juros virou uma oportunidade para a classe média realizar o sonho da casa própria. Só nos oito primeiros meses deste ano, foram 237 mil imóveis financiados com recursos do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), alta de 31,3% em relação a igual período do ano passado. Os valores movimentados chegaram a R$ 65,9 bilhões, aumento de 40%.
Mas o desafio da renda para ter acesso ao financiamento continua num cenário de crise fiscal e redução dos subsídios governamentais para a moradia. A realidade é que a maioria dos brasileiros mais pobres não tem renda para bancar um financiamento, mesmo com prestações baixas.