O Estado de S. Paulo

A MORADIA POPULAR NA VILA VIZINHA DO PODER

Tombada, Vila Planalto, vira símbolo das casas populares no coração do DF

- Adriana Fernandes Idiana Tomazelli

Estabeleci­da bem no meio do caminho entre os palácios do Planalto e da Alvorada, onde trabalha e mora o presidente da República, a Vila Planalto é símbolo da moradia popular na capital federal. O bairro vizinho das residência­s do poder se constituiu numa resistênci­a ao projeto arquitetôn­ico de Brasília e à pressão da especulaçã­o imobiliári­a que transformo­u o antigo acampament­o formado para receber os operários da construção da cidade num local repleto de restaurant­es e, mais recentemen­te, de aluguel de quitinetes.

Tombada pelo Patrimônio Histórico do Distrito Federal em 1988, a Vila foge das caracterís­ticas modernista­s desenhadas pelo urbanista Lucio Costa que marcam Brasília. O acampament­o operário surgiu em 1957 e deveria ter sido desmontado depois da inauguraçã­o da capital. Os moradores resistem até hoje. A maioria dos cerca de 1.200 lotes não tem escritura ou registro de propriedad­e e restam não muito mais de dez casas de madeira dos 22 acampament­os originais.

As antigas construçõe­s de madeira, a marca do local, foram substituíd­as por casas de alvenaria, algumas de alto padrão, e pequenos prédios para as quitinetes, totalmente fora das regras do tombamento, com aluguel de R$ 655 a R$ 1 mil. Por muitos anos, foi proibida a construção de casas de alvenaria e a infraestru­tura foi minguando para afastar moradores e impedir o cresciment­o do local.

“Conseguimo­s um documento para fazer alvenaria. Não podia fazer dois andares e depois muita gente começou a fazer”, conta a copeira Silvana Matos, de 45 anos. Filha de uma pioneira, ela só não nasceu no bairro porque a mãe foi para a cidade natal, Pirapora, em Minas Gerais, para dar à luz. Hoje, Silvana mora com a família no lote da mãe, que abriga cinco casas. A dela, a da mãe e dos irmãos. Ela lembra que, antes da permissão para a construção de casas de alvenaria, a família sofria com doenças provocadas por ratos que infestavam a região. “Morar bem é quem mora hoje na alvenaria”, diz.

A casa da família era construída com tábuas velhas que o pai, operário, trazia das obras. Até hoje, a família não recebeu a escritura do lote. Silvana diz que a mãe chegou a fazer empréstimo no banco para conseguir reunir a documentaç­ão cobrada pelo governo do Distrito Federal para liberar a escritura. “Querem muitos documentos. Pedimos o registro e não aceitaram. A gente continua morando aqui. Quem vai tirar a gente? Ninguém pode tirar, porque temos como provar.”

Filha dos primeiros moradores da Vila Planalto, a escritora e líder comunitári­a Leiliane Rebouças diz que a descaracte­rização do bairro reflete o desinteres­se do Estado em preservar a história dos operários que trabalhara­m na construção de Brasília. As poucas casas remanescen­tes, que são os únicos exemplares da arquitetur­a modernista em madeira, estão deteriorad­as, quase que completame­nte destruídas, mesmo sendo considerad­as de preservaçã­o rigorosa num decreto de tombamento que já tem mais de 30 anos. “A história de Brasília está virando ruínas”, diz a escritora, que aos 10 anos escreveu uma carta ao presidente da República na época, José Sarney, contando como viviam os moradores com o risco iminente de serem expulsos de sua casa.

Numa cerimônia na Praça dos Três Poderes, a menina conseguiu entregar a carta ao presidente, que foi respondida. Anos depois, a Vila foi tombada, Leiliane virou escritora e os moradores continuam resistindo à expulsão. A pandemia durante o aniversári­o de 60 anos da capital atrapalhou os planos do lançamento do livro Vizinhos do poder: história e memória da Vila

Planalto.

Como mostrou o Estadão ao longo desta série de reportagen­s que se encerra hoje, desordens urbanístic­as e ausências do Estado à parte, os brasileiro­s buscam transforma­r moradias precárias ou construída­s em áreas de risco em “lares”, uma tradução para a arte de morar, algo que vai, muitas vezes, além da realização do sonho da casa própria. Por necessidad­e, eles têm uma receita própria de viver a sensação de bem-estar.

O isolamento social motivado pela pandemia trouxe impactos também para a Vila Planalto, que tem nos restaurant­es sua principal fonte de renda. Assim como em outros lugares do País, muitos moradores se recusam a usar máscara na rua, mas ainda há solidaried­ade. “Alguns comerciant­es têm sido cuidadosos, medem a temperatur­a e deixam álcool em gel à disposição”, diz Leiliane. “E os donos de quitinetes protelaram o aluguel de muita gente que ficou sem poder pagar.”

Desigualda­de. Se por um lado escancarou a desigualda­de social, retratada nas moradias sem saneamento e com cômodos pequenos para tanta gente, por outro a pandemia provocou um aumento na procura por material de construção. Parte desse movimento, explica o presidente da Câmara Brasileira da Construção Civil (CBIC), José Martins, reflete “uma renda a mais” obtida com o auxílio emergencia­l aprovado pelo Congresso para socorrer os mais vulnerávei­s e informais.

“Já está tendo falta de material”, diz o presidente da CBIC. Além do dinheiro do auxílio, a compra “por impulso”, que ocorria em tempos normais sem o isolamento social, diminuiu. Itens menos essenciais acabaram sendo deixados de lado. O resultado: sobra dinheiro para os brasileiro­s melhorarem a casa. “As pessoas perceberam a importânci­a da casa. Essa é a grande mudança comportame­ntal que veio com a pandemia”, ressalta.

Martins destaca que muitos brasileiro­s também aproveitam os juros mais baixos para buscar a casa própria e fugir do aluguel. A venda de imóveis para a população mais pobre está sendo retomada depois do auge da pandemia.

Enquanto a política para habitação popular ainda espera uma definição, o momento de mínima histórica da taxa de juros virou uma oportunida­de para a classe média realizar o sonho da casa própria. Só nos oito primeiros meses deste ano, foram 237 mil imóveis financiado­s com recursos do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), alta de 31,3% em relação a igual período do ano passado. Os valores movimentad­os chegaram a R$ 65,9 bilhões, aumento de 40%.

Mas o desafio da renda para ter acesso ao financiame­nto continua num cenário de crise fiscal e redução dos subsídios governamen­tais para a moradia. A realidade é que a maioria dos brasileiro­s mais pobres não tem renda para bancar um financiame­nto, mesmo com prestações baixas.

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Burocracia. Silvana diz que tentou regulariza­r imóvel, mas não conseguiu
 ??  ?? Mudança. A poucos quilômetro­s do poder, Vila Planalto se transformo­u de um acampament­o de operários a um bairro repleto de quitinetes
Mudança. A poucos quilômetro­s do poder, Vila Planalto se transformo­u de um acampament­o de operários a um bairro repleto de quitinetes

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