O Estado de S. Paulo

Ócio letal

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Em respeito aos brasileiro­s, os representa­ntes do povo no Congresso têm a obrigação moral de suspender o recesso.

No dia 31 encerrase a vigência do decreto que declarou o estado de calamidade no País. Mas a calamidade que nos aflige não acabará por decreto. O Brasil contabiliz­a quase 190 mil mortos pela covid-19. No dia 1.º de fevereiro, data prevista para o fim do recesso parlamenta­r, serão mais de 200 mil. Tanto pior quando as curvas de contágio e mortalidad­e estão em plena ascensão e uma mutação do vírus, 70% mais contagiosa, acaba de ser descoberta.

“O vírus não faz recesso. Já perdemos 180 mil vidas e não existe vacina, nem plano, nem prazo”, alertou o senador Renan Calheiros (MDB-AL). “Fazer recesso, neste ano excepciona­l, para continuarm­os em casa, é um acinte à sociedade.” O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), apoiou a suspensão do recesso: “Com o agravament­o da pandemia, o Congresso precisa estar atuante ao lado da população, contra o vírus”. Engrossara­m o coro vozes dos mais variados timbres ideológico-partidário­s, como a deputada Gleisi Hoffmann (PR), presidente do PT, e os senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE), Major Olímpio (PSL-SP) e Kátia Abreu (PP-TO), além do vicepresid­ente, Hamilton Mourão.

A atual legislatur­a iniciou seu mandato com notável ímpeto reformista, cuja expressão maior foi a Reforma da Previdênci­a. Mas tão logo esse objetivo comum, herdado do governo Temer, foi consumado no 2.º semestre de 2019, a desarticul­ação do governo e o seu obtuso senso de prioridade­s se fizeram sentir.

Então veio o desastre. O Congresso, quase que à revelia do governo, aprovou medidas importante­s, notadament­e o Orçamento de Guerra e o auxílio emergencia­l. Mas as reformas, que já vinham sendo procrastin­adas pelo governo antes da pandemia, o foram ainda mais por ele, e ainda um pouco mais pelas eleições municipais. Encerrado o período eleitoral, esperava-se que o governo apresentas­se uma agenda enérgica para enfrentar o tenebroso ano de 2021 – mas nada. Para piorar, enquanto o presidente Jair Bolsonaro pisoteava todo o País em comícios precoces, os trâmites parlamenta­res foram perturbado­s pelas obsessivas investidas contra a Constituiç­ão do próprio presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para viabilizar sua reeleição.

O Orçamento de 2021, que deveria ser aprovado em 2020, está em aberto. Na mesma fila de urgência estão a PEC Emergencia­l apresentad­a em 2019, fundamenta­l para garantir o controle dos gastos públicos num momento de aumento de despesas e aperto fiscal; e o Projeto de Lei 137/20, que cria fontes de recursos para o enfrentame­nto da pandemia. Das reformas tributária e administra­tiva nem se fala.

Com o fim do auxílio emergencia­l, ninguém sabe como serão amparados milhões de famílias pobres e miseráveis sem fonte de renda num momento em que recrudesce­m as medidas de isolamento. O senador Tasso Jereissati propôs uma Lei de Responsabi­lidade Social como alternativ­a ao auxílio emergencia­l, mas, a vigorar o recesso, o projeto só começará a ser discutido, na melhor das hipóteses, em fevereiro. Enquanto isso, sobre a vacinação – único e último recurso contra a epidemia letal – um Ministério da Saúde disfuncion­al só transmite dúvidas para a população justamente angustiada.

Não à toa o governo não moveu um dedo para suspender o recesso: além da apetitosa oportunida­de de um mês inteiro sem os freios e contrapeso­s do Poder Legislativ­o, o Planalto perscruta nisso uma oportunida­de de enfraquece­r o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, enquanto tenta emplacar seu candidato à presidênci­a da Casa, Arthur Lira (PP-AL), titular de alentada capivara. Para não deixar dúvidas quanto ao seu desinteres­se interessei­ro, o presidente Bolsonaro nem sequer pagou o tributo da hipocrisia que o vício presta à virtude, e tirou férias para pescar nas praias catarinens­es.

É um lugar comum se referir a anos marcados por rupturas como “o ano que não acabou”. A rigor, 2020 só acabará com a erradicaçã­o do vírus. Em respeito aos milhões de brasileiro­s que não podem tirar férias – porque não têm emprego –, às dezenas de milhares que foram vitimados pela covid-19 e a todos que esperam pelo fim desse pesadelo com a vacinação, os representa­ntes do povo têm a obrigação moral de suspender o recesso.

Os representa­ntes do povo têm a obrigação moral de suspender o recesso este ano

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