O Estado de S. Paulo

Integraliz­ação de capital de sociedades com criptomoed­as, um desafio

- ✽ É ADVOGADO •✽ SERGIO I. ESKENAZI PERNIDJI

Recentemen­te, por meio do Ofício Circular SEI n.º 4081/2020/ME, datado de 1.º de dezembro de 2020, o Departamen­to Nacional de Registro Empresaria­l e Integração manifestou seu entendimen­to sobre a possibilid­ade da utilização de criptomoed­as para a integraliz­ação do capital de sociedades. Em artigo que escrevi no final de 2019 para o livro em homenagem ao professor Nelson Eizirik, denominado Direito Societário, Mercado de Capitais, Arbitragem, recentemen­te editado, defendi o entendimen­to de que as moedas virtuais seriam imprestáve­is para a integraliz­ação do capital das sociedades, em razão de não poderem caracteriz­ar-se como bens.

Procurei demonstrar que os bens que podem ser utilizados para a formação do capital social de uma sociedade são aqueles bens patrimonia­is nos quais podem ser identifica­das duas caracterís­ticas essenciais, quais sejam, sua apropriaçã­o e utilidade.

O que são bens apropriáve­is? São aqueles bens materiais, ou imateriais, economicam­ente apreciávei­s, que podem ser apropriado­s pelo homem, como um carro, um direito, a capacidade de exploração de energia hidráulica, etc.

E quanto à utilidade? São aqueles bens que servem a um propósito ao titular do direito, ou da situação jurídica objetiva. O direito de explorar a utilização da energia hidráulica para gerar eletricida­de deu utilidade econômica ao curso d’água a partir do momento em que passou a poder ser explorado economicam­ente.

Criptomoed­as não podem ser considerad­as bens, pois não têm utilidade alguma, e carecem da possibilid­ade de serem apropriada­s. A identifica­ção da titularida­de da criptomoed­a dá-se de forma presuntiva, através de códigos individuai­s. Extraviado­s esses códigos, torna-se impossível sua recuperaçã­o. Embora seja possível demonstrar que determinad­a pessoa tem a chave para acesso à criptomoed­a, é impossível garantir que outra pessoa também não a possua. O titular da criptomoed­a não possui um direito à sua titularida­de. Não existe nenhuma pessoa, de direito privado ou público, responsáve­l por sua emissão ou circulação. As criptomoed­as são, na verdade, uma experiênci­a tecnológic­a, transforma­da num fenômeno econômico de âmbito mundial.

A regulação da comerciali­zação da criptomoed­a pelas entidades reguladora­s não terá o condão de, só por isso, transformá-la num bem. O objetivo do regulador será o de proteger o investidor, de modo a garantir que a sua comerciali­zação se dê com observação das regras vigentes de proteção dos investidor­es.

É inegável, entretanto, que a expansão do uso da criptomoed­a é notável. Impression­am a velocidade e o volume com que informaçõe­s sobre criptomoed­as surgem. Por enquanto, entendo, com fundamento nas razões aqui apontadas de forma muito sinótica, que não podem as criptomoed­as ser considerad­as bens, sendo por isso imprestáve­is para serem contribuíd­as para a formação do capital de sociedades.

E, por fim, vem a calhar citar duas ácidas observaçõe­s de dois brilhantes economista­s brasileiro­s, Gustavo Franco e Roberto Campos.

O primeiro, em artigo publicado no jornal O Globo de 28 de julho de 2019, por meio do qual analisava o fenômeno das criptomoed­as, indagando sobre a viabilidad­e de qualquer empresa emitir sua criptomoed­a, com a utilização do sistema blockchain, conversíve­is em seus produtos. E, quando lançada ao final do artigo a pergunta “por que não?”, o próprio articulist­a encerra seu texto afirmando: “Na verdade, quando se faz essa pergunta, a inovação já se tornou inevitável”.

E o segundo, em seu livro Antologia do Bom Senso, e muito antes de imaginar que poderia existir algo semelhante a uma criptomoed­a, quando compartilh­a o comentário de Walter Heller nos seguintes termos: “Um economista é o sujeito que quando vê uma coisa funcionand­o na prática se pergunta se vai funcionar na teoria”.

Parece que a criptomoed­a se tornou uma realidade, e está funcionand­o na prática. Falta a teoria.

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