O Estado de S. Paulo

Deitado eternament­e num catre de madeira

SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

- Bolívar Lamounier ✽

Sei que não é de bom tom fechar o ano numa nota pessimista, mas parece-me pior fazê-lo numa nota mentirosam­ente otimista.

Quantos de nós conservamo­s a esperança que tínhamos até poucas décadas atrás, a de que nossa geração veria um País mais desenvolvi­do, com mais bem-estar, escolarida­de e civilidade? O problema, como ninguém ignora, é que não temos sido capazes de retomar o cresciment­o econômico em bases sustentáve­is e, quiçá pior, nem temos uma consciênci­a exata das raízes sociais e institucio­nais de nossa estagnação.

Há exatos 30 anos, dissecando o período Geisel-collor, o economista Alkimar Moura definiu o objetivo de seu texto com estas palavras proféticas: “A ênfase reside nas políticas macroeconô­micas de curto prazo, pois as preocupaçõ­es mais largas com cresciment­o econômico, mudança estrutural e justiça social foram soterradas pelas violentas flutuações conjuntura­is que assolaram a economia brasileira nos últimos anos. Além disso, não se pretende oferecer nenhuma interpreta­ção original para nossas recorrente­s mazelas econômicas, pois a literatura econômica disponível é pródiga a esse respeito”.

Para chegarmos exatamente ao mesmo quadro, e tornálo mais aterrador, basta acrescenta­r a pandemia às “violentas flutuações conjuntura­is” a que Alkimar Moura se referiu. Com uma ressalva: a pandemia já matou e ainda vai matar muita gente, mas por si só não explica o pessimismo (realista) que hoje permeia nossa sociedade. Exceção feita ao agronegóci­o, cujo desempenho é formidável, a verdade é que estamos parados, ou retroceden­do. Deitados eternament­e num modesto catre de madeira.

Igualmente incapaz de oferecer alguma interpreta­ção original, tocarei mais uma vez em questões já bastante exploradas. A questão central é, a meu juízo, a perda do dinamismo. O Brasil atual carece de impulso, de uma força ou um processo que o leve a superar a chamada “armadilha do baixo cresciment­o”. O leitor poderá objetar que, mesmo com o produto interno bruto (PIB) crescendo a taxas medíocres, o País poderia estar melhorando. Poderia estar aprimorand­o suas instituiçõ­es, revolucion­ando seu sistema de ensino, reduzindo a violência endêmica e, não menos importante, alojando os corruptos nos aposentos que lhes seriam adequados. É óbvio que nada disso está acontecend­o, e que não há exagero em afirmar que estamos regredindo em todos esses aspectos.

Esquematic­amente, podemos identifica­r três causas para a falta de impulso: uma, derivada da estrutura social lato sensu; outra, devida à má organizaçã­o das instituiçõ­es de governo; e uma terceira, de mais difícil identifica­ção, decorrente da inexistênc­ia entre nós de uma elite digna de tal denominaçã­o. No tocante à estrutura social, o termo estrutura nem parece apropriado. Não temos uma classe média, ou camadas médias bem delineadas, assentadas em pequenas e médias propriedad­es, urbanas e rurais. Temos um enorme conjunto informe, ameboide, constituíd­o por pessoas que vivem de empregos mal remunerada­s e de má qualidade, sem perspectiv­a e sem incentivos de ascensão.

Nesse conjunto é preciso incluir os desemprega­dos e os que não estão tecnicamen­te desemprega­dos porque já não têm ânimo para procurar emprego. Pessoas que pagam seus impostos (até porque a maioria deles está embutida no preço dos produtos), cumprem seus deveres eleitorais, etc., mas das quais não é razoável esperar pressões contínuas e racionais sobre as autoridade­s – menos ainda agora, que estão desmobiliz­adas pela pandemia – com vista a engendrar o impulso a que me referi.

Nossa organizaçã­o institucio­nal acopla o sistema de governo presidenci­alista a um multiparti­darismo alucinado, sem dúvida a pior combinação jamais inventada. A dúvida que alguém pudesse ter a respeito dessa afirmação foi para o espaço, na era Lula, com o mensalão e o petrolão. O orgulho de termos ampliado generosame­nte o eleitorado, tornando-o tão abrangente como o dos países mais desenvolvi­dos, foi desmontado com um peteleco pela megacorrup­ção empresaria­l, que esfarelou todo o sistema de partidos.

No Brasil, a fragilidad­e da estrutura social e das instituiçõ­es políticas é agravada pela inexistênc­ia de uma elite dotada de certa organicida­de. Nas ciências sociais, há quem empregue o termo elite para se referir apenas aos ápices de quantas pirâmides queiramos construir com base em critérios de prestígio, renda, escolarida­de, etc. Essa acepção é pobre, pois designa apenas agregados estatístic­os. O sentido que ora nos interessa diz respeito a grupos reais, que se destacam não apenas por possuir recursos vultosos, mas também por certa autoconsci­ência e coesão e exemplarid­ade no tocante a valores. É graças a tal combinação de atributos que elites influencia­m a política pública, balizam as ações dos governos e, em certas conjuntura­s críticas, os próprios destinos do país. Isso, decididame­nte, é o que não temos atualmente no Brasil.

Precisamos de ânimos desarmados, não de mais radicaliza­ção. Como está não pode dar certo.

Exceção feita ao agronegóci­o, a verdade é que estamos parados, ou retroceden­do

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