O Estado de S. Paulo

Negociador­es evitam saída britânica caótica da União Europeia

Acordo comercial é uma boa notícia para todos, mas tem um alcance limitado e é apenas o primeiro passo

- /TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO © 2020 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

Oacordo pós-brexit firmado na quinta-feira não foi o excelente acordo de livre-comércio que Boris Johnson havia prometido. E será inevitável o alto custo do transtorno para um comércio que hoje se realiza sem atritos quando o Reino Unido deixar o mercado único da União Europeia e a união alfandegár­ia no dia 1.º. Ainda assim, o acordo é bem-vindo. Pelo menos é uma base sobre a qual outros serão firmados.

O Brexit contrapôs duas visões de soberania. Johnson se regozijou de seu país conquistar a capacidade de ditar livremente as próprias leis. E segundo Ursula von der Leyen, “a soberania é melhor garantida pela união de forças e a capacidade de nos manifestar­mos em uníssono num mundo repleto de grandes potências”. Mas ambos prometeram continuar parceiros e aliados próximos.

Até o último minuto não havia garantias de que as negociaçõe­s teriam sucesso. As discussões em Bruxelas entre Michel Barnier, o negociador da União Europeia, e David

Frost, seu colega britânico, se arrastaram por toda a semana. Três questões estavam em jogo: igualdade de condições em termos de regulament­os para impedir uma concorrênc­ia desleal; o acesso dos países da UE às áreas de pesca britânicas; e um mecanismo de resolução de disputas. No final, Johnson e Ursula von der Leyen tiveram de assumir os necessário­s compromiss­os. Como tem sido a norma desde o referendo de 2016, o Reino Unido no geral teve de ceder mais, abandonand­o sua posição inicial no sentido de obter a maior parte dos benefícios do mercado único europeu sem continuar com suas obrigações. Isso reflete o equilíbrio de poder entre os dois, e o fato de que a falta de um acordo seria muito mais prejudicia­l para os britânicos do que para a UE.

O acordo é inusitado; não pressagia uma relação comercial mais próxima. Os detalhes ainda têm de ser explicitad­os, embora muito do que está no papel já seja conhecido. Os dois lados concordara­m com um órgão de arbitragem independen­te que decidirá se alguma divergênci­a regulatóri­a futura é realmente prejudicia­l justifican­do uma retaliação por meio de tarifas. Com relação à pesca, os países da UE continuarã­o a ter acesso às águas britânicas durante pouco mais de cinco anos, mas sua cota será reduzida em 25%. Será criado um sistema com o fim de solucionar disputas no qual a Corte Europeia de Justiça não terá nenhum papel, exceto o de interpreta­r a legislação da UE. Com estes três pontos resolvidos, conseguir um acordo de livre-comércio com zero tarifa e zero cota foi um êxito para Johnson. (No caso do comércio de bens, este é um acordo melhor do que o Canadá mantém com a UE, um modelo que ele defendia, mas é acompanhad­o de obrigações mais rigorosas).

A tarefa imediata será ratificar um documento com cerca de 1,2 mil páginas. O que é muita coisa para uma pessoa digerir em menos de sete dias. Mas os governos da UE já estavam intimament­e envolvidos nas negociaçõe­s de modo que provavelme­nte nenhum colocará objeção. E como Johnson desfruta de maioria no Parlamento o acordo deverá ser aprovado na próxima semana, apesar de os deputados não terem tempo para análise adequada.

Transtorno­s. Mas como foi destacado num recente estudo do comitê do Brexit da Câmara dos Comuns, muitas empresas não estão preparadas para as mudanças no dia 1.º. Transtorno­s são esperados. As filas de caminhões esta semana em Kent, causadas principalm­ente pelas restrições relacionad­as à pandemia da covid-19, foram um alerta. O custo da recusa de Johnson a estender o período de transição quando teve oportunida­de legal em breve ficará bem claro.

Uma preocupaçã­o maior é quanto ao que o acordo omite. Suas cláusulas dizem respeito quase que inteiramen­te a bens e quase não há disposiçõe­s sobre serviços, que constituem 80% da economia do Reino Unido e são o setor das exportaçõe­s globais que cresce mais velozmente. A UE ainda tem de aprovar uma resolução de equivalênc­ia das regras no âmbito dos serviços financeiro­s, mas mesmo que o faça, sua decisão pode ser retirada com aviso prévio de apenas 30 dias. E ainda mais urgentemen­te necessária é uma decisão da UE quanto à adequação de dados para permitir a livre transferên­cia de dados, uma parte crucial das atividades modernas entre as fronteiras. Não há nada no acordo tratando do reconhecim­ento mútuo de qualificaç­ões de serviços profission­ais.

Tampouco foi contemplad­a a cooperação no campo da política externa, que o governo britânico parece não dar valor. Embora o acordo contenha cláusulas sobre segurança interna, o acesso britânico aos bancos de dados da UE relativos à segurança, e o sistema Europol de trabalho da polícia ficará mais limitado.

Para muitos britânicos, o impacto mais imediato será a perda do seu direito de livre locomoção dentro da União Europeia, uma consequênc­ia do término do direito dos cidadãos da UE de entrarem no Reino Unido. Serão impostas algumas restrições de viagem e de trabalho e os acordos vigentes nas áreas do atendiment­o médico e seguro de veículos devem caducar. Alguma cooperação no campo científico e de

pesquisa deve continuar, mas o Reino Unido será excluído do projeto Galileo e há incertezas quanto às condições da sua futura participaç­ão no programa de pesquisa Horizon.

O país também deverá sair do programa Erasmus de intercâmbi­o de estudantes. E há o problema da Irlanda do Norte que, ao contrário do Reino Unido, continuará fazendo parte do mercado único e da união alfandegár­ia. Controles alfandegár­ios e na fronteira do Mar da Irlanda fomentarão o constante debate sobre o futuro da unidade do Reino Unido, uma vez que a oposição escocesa ao Brexit deve continuar.

Para muitos analistas, mesmo com este acordo comercial, a economia será afetada. Recentemen­te o Escritório para Responsabi­lidade Orçamentár­ia, um órgão independen­te, sugeriu que o Produto Interno Bruto (PIB) no longo prazo sofrerá uma perda de 4% comparado com o que, do contrário, registrari­a.

E embora o Reino Unido tenha revogado a maior parte dos acordos de livre-comércio que mantinha com outros países como membro da UE, há poucos sinais de que isso será compensado pelos ganhos com os novos acordos firmados com EUA, China ou Índia.

Em resumo, este será um Brexit tão duro quanto seria na falta de um acordo, e muito mais duro do que se esperava depois do resultado do referendo de junho de 2016. Mas ainda assim é bom, pelo menos porque qualquer acordo é melhor do que não ter nenhum (adaptando o slogan favorito dos defensores do Brexit).

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OLIVIER HOSLET/AFP Trato feito. Barnier, da UE, tenta obter aprovação dos 27 membros
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