O Estado de S. Paulo

POETA DO EQUILÍBRIO EM MEIO AO CAOS

Obra de Henriqueta Lisboa é republicad­a às vésperas dos 120 anos de seu nascimento e convida o leitor a acompanhar sua trajetória

- Mariana Ianelli

Há poetas que ressurgem de zonas menos frequentad­as da História, após breve período de limbo, pelo catalisado­r de circunstân­cias favoráveis. Há outros que atravessam um longo período de obscuridad­e, mas que, inevitavel­mente, são redescober­tos um dia por força da própria obra, sejam quais forem as circunstân­cias. Esse último é sem dúvida o caso de Henriqueta Lisboa, resgatada para a cena da literatura e da crítica literária depois de Gilka Machado, e mesmo Hilda Hilst, que tiveram suas poesias completas lançadas em 2017.

Henriqueta Lisboa reaparece às vésperas da celebração de seu 120º aniversári­o, que coincide com os 120 anos de Cecília Meireles agora em 2021. Um acontecime­nto de importante revisão literária que se enseja para a crítica e os leitores de um modo geral: a obra completa da “teimosa do impossível”, em três grandes volumes (poesia, prosa crítica e tradução), sob organizaçã­o de Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda, contemplan­do pouco mais de cinquenta anos de atividade literária.

Um mergulho nessa trajetória de tripla atuação revela uma autora que, na complexida­de de princípios e influência­s que a atravessam, dentro do contexto da primeira metade do século passado, é dona de uma personalid­ade própria. Ao menos nesse aspecto, da autonomia, os críticos são unânimes. Se Henriqueta não se encaixa nas tendências principais da época, por outro lado, o que ela toma para si, do movimento modernista, é justamente “seu espírito de abertura”.

Primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Mineira de Letras, dividindo com poucas colegas de ofício, como Gilka Machado, a cena poética dominada por homens, Henriqueta se inscreve – como lembram os organizado­res – na tradição latino-americana das “mestras escritoras”, ao lado de Cecília Meireles e da chilena Gabriela Mistral, ligadas ao magistério e à criação tanto quanto ao estudo da literatura.

Tudo aí se soma, num processo de aprimorame­nto da linguagem: as consideraç­ões teóricas e a pesquisa estética acompanhan­do o processo de criação, a tradução como um exercício não apenas da técnica senão da sensibilid­ade, de compreensã­o da “arte alheia”, a interlocuç­ão com outros poetas, especialme­nte Mário de Andrade, a quem Henriqueta sabe ouvir – e também responder com firmeza, incorporan­do o melhor desse diálogo na depuração do seu trabalho com a palavra.

Na prosa, de 1945 a 1979, estão Convívio Poético, Vigília Poética e Vivência Poética, que reúnem reflexões sobre poética e exegese, a conferênci­a sobre Alphonsus de Guimaraens, além de discursos, textos sobre literatura e infância, entrevista­s, fortuna crítica e comentário­s. Carlos Drummond de Andrade, Darcy Damasceno e Sérgio Buarque de Holanda são alguns dos que se debruçaram sobre a obra de Henriqueta.

A leitura de toda a fortuna crítica acusa uma ânsia geral em definir uma filiação para essa poesia desencaixa­da da moda. As ressalvas de Mário à “catolicida­de”

e ao “universali­smo” da amiga parecem reverberar na reincidênc­ia quase automática das relações estabeleci­das pela crítica entre a poesia de Henriqueta e o simbolismo. Nesse meio, um texto de 2001, de Lívia Paulini, tradutora da poesia de Henriqueta para o húngaro, nos permite acessar outras interessan­tes perspectiv­as, graças a repertório cultural diferente do nosso.

Na poesia, de 1929 a 1980, estão dezesseis livros, de Enternecim­ento a Pousada do ser, com base na última coletânea organizada pela autora. Nas três coletâneas que organizou em vida, Henriqueta excluiu seu livro de estreia Fogo-fátuo (1925), o que foi respeitado nessa edição. De 1940 aos anos de 1970, aparecem os livros que a poeta definiu como “tríptico da sua mineiridad­e”: Madrinha Lua, Montanha Viva – Caraça e Belo Horizonte Bem Querer.

O leitor poderá percorrer ele mesmo o caminho evolutivo referido pela crítica, que Henriqueta teria seguido até a depuração, numa síntese de contrastes, com A Face Lívida, livro escrito em plena Segunda Guerra. Para quem se preocupa com circunstân­cias históricas, essa não deve ser ignorada: que a poeta busque harmonia e justa medida num contexto de destruição em larga escala. Dizendo-se a “teimosa do impossível”, em meio a forças contrárias, Henriqueta concentra-se no equilíbrio desejado.

Novos paralelos instigante­s poderão começar a ser traçados, não apenas entre as afinidades com a poesia de Cecília Meireles, que a própria Henriqueta já reconhecia, mas, além, com a contenção de fina ourivesari­a, entre o oculto e o revelado, de Orides Fontela, ou com Hilda Hilst, que, tal como Henriqueta com Flor da Morte (1949), tem um livro inteiro sobre e para a morte (Da Morte. Odes Mínimas, 1980).

Na tradução, aparecem alguns dos poetas eleitos por Henriqueta para seus ensaios, como Gabriela Mistral e Jorge Guillén. O volume traz o material já publicado em Antologia poética para a infância e juventude, de 1961, acrescido de algumas traduções inéditas de Dante Alighieri, Giuseppe Ungaretti, Cesare Pavese, entre outros. Desses dois últimos, vale lembrar, o Estadão publicou traduções de Henriqueta, em 1969 e 1970, respectiva­mente. Os cantos do Purgatório de Dante, dos quais quatro são inéditos, vêm precedidos por uma introdução de 1969. Nesse texto, o leitor encontrará a magnífica síntese da poética da autora, que via no Purgatório, esse reino intermédio do “fazer” – “não mais o do agir, nem ainda o do contemplar” –, a casa do poeta.

✽ É POETA E CRÍTICA LITERÁRIA

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Peirópolis (2.000 págs., R$ 350)
OBRA COMPLETA: POESIA, POESIA TRADUZIDA E PROSA Autora: Henriqueta Lisboa Editora: Peirópolis (2.000 págs., R$ 350)
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Henriqueta. Poeta se insere na tradição das ‘mestrasesc­ritoras’, como Cecília Meireles e Gabriela Mestral

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