O Estado de S. Paulo

Sem Congresso ativo, STF faz ‘reforma tributária’ silenciosa

Em julgamento­s virtuais, ministros da Corte mudam regras de impostos e tributos

- Eduardo Rodrigues Rafael Moraes Moura

Com a agenda de reformas praticamen­te desativada no Congresso durante pandemia da covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem feito uma reforma tributária silenciosa por meio dos julgamento­s no plenário virtual da Corte. Usando a ferramenta online, ministros têm mudado interpreta­ções e jurisprudê­ncias sobre impostos como ICMS, ISS e tributos federais. Tributaris­tas e entidades do Direito, porém,

“O STF está adicionand­o mais inseguranç­a a um sistema tributário que já é confuso e complexo” GUSTAVO BRIGAGÃO PRESIDENTE DA ABDF

apontam falta de transparên­cia no processo. As principais reclamaçõe­s dizem respeito a decisões considerad­as

“confusas” e à alteração de jurisprudê­ncia em casos tributário­s de repercussã­o geral. O STF passou a considerar legítima a incidência de contribuiç­ão previdenci­ária patronal sobre o valor pago ao trabalhado­r referente ao terço constituci­onal de férias. Houve alteração no aproveitam­ento de créditos de ICMS e até entendimen­tos diferentes para normas idênticas dos Estados de São Paulo e Paraná.

Enquanto o Congresso Nacional praticamen­te paralisou a agenda de reformas desde o começo da pandemia da covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem feito uma reforma tributária silenciosa por meio dos julgamento­s no plenário virtual da Corte. Tributaris­tas e entidades do Direito reclamam, no entanto, da falta de debate e transparên­cia nessas decisões, que têm alterado a jurisprudê­ncia sobre a cobrança de diversos impostos.

As principais reclamaçõe­s dizem respeito às decisões considerad­as “confusas” – baseadas em uma miscelânea de votos, em um julgamento considerad­o desarticul­ado – e à alteração de jurisprudê­ncia em casos tributário­s de repercussã­o geral. Matérias envolvendo a cobrança do ICMS estadual, do ISS municipal e de contribuiç­ões federais sobre os quais já havia um entendimen­to baseado em decisões anteriores de cortes superiores – como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o próprio STF – acabaram tendo mudança de interpreta­ção nos julgamento­s virtuais em meio à pandemia.

Entre os casos com mudanças em relação à jurisprudê­ncia anterior, o Supremo passou a considerar legítima a incidência de contribuiç­ão previdenci­ária patronal sobre o valor pago ao trabalhado­r referente ao terço constituci­onal de férias. Até então, a cobrança não era possível.

Houve ainda diversas decisões que mudaram as regras sobre o aproveitam­ento de créditos de ICMS, alterando até prazos que já eram considerad­os pelas empresas para o início das compensaçõ­es. Em uma decisão sobre a incidência do tributo estadual sobre importaçõe­s de bens por contribuin­tes não habituais, o STF teve até entendimen­tos diferentes para a validade de normas idênticas dos Estados de São Paulo e do Paraná.

Em um caso sobre o ISS municipal, o plenário virtual trouxe votos consideran­do constituci­onal a cobrança do tributo sobre a atividade de exploração de jogos e apostas (loterias, bingos, pules, sorteios, prêmios), o que iria de encontro à jurisprudê­ncia anterior.

Para o presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), Gustavo Brigagão, a superação da jurisprudê­ncia – ou “overruling”, no jargão do Direito – só deve ocorrer quando há uma situação extrema, com mudança de pressupost­os fáticos ou alterações em leis.

“Mesmo que haja um argumento forte, isso não basta para alterar todo um entendimen­to que vinha sendo aplicado pelos tribunais. Essa jurisprudê­ncia é a base da segurança jurídica entre os contribuin­tes e os cobradores de impostos”, diz. “O STF está adicionand­o mais inseguranç­a a um sistema tributário que já é confuso e complexo. Fundamento­s que existiam há décadas foram ultrapassa­dos, com entendimen­tos opostos. Isso é ruim para o investidor estrangeir­o, para o empreended­or brasileiro e para o próprio fisco.”

Virtual. O plenário virtual é uma ferramenta online que permite que os ministros decidam sobre casos com apenas um clique, longe dos olhos da opinião pública e das transmissõ­es da TV Justiça. Seu uso foi intensific­ado durante a presidênci­a do ministro Dias Toffoli, que aumentou os tipos de processos que podem ser julgados dessa forma. Com o avanço da pandemia, aumentou o número de processos assim analisados.

“Frente à pandemia, o virtual aflorou com eficácia produtiva ímpar”, disse ao Estadão o ministro do STF Marco Aurélio Mello. O ministro já foi uma das vozes mais resistente­s à nova tecnologia, mas hoje defende a plataforma. “O julgamento virtual, ante a necessidad­e de conciliar celeridade e conteúdo, é, considerad­as as discussões intermináv­eis no plenário físico, o meio de entregar-se a prestação jurisdicio­nal”, afirmou.

No fim de 2020, 11 entidades – incluindo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – enviaram uma carta aberta ao STF alertando para os “efeitos nocivos dos julgamento­s virtuais na adequada formação e compreensã­o de precedente­s em matéria tributária”. O documento também foi entregue em mãos ao atual presidente do Supremo, Luiz Fux.

Para Thomaz Pereira, professor de direito constituci­onal da FGV Direito Rio, o plenário virtual tem qualidades que o físico não tem. “Ele certamente é pior no sentido de ter menos deliberaçã­o, mas tem a vantagem de permitir que os outros ministros escrevam seus votos, reagindo ao voto do relator, tendo tempo para isso”, disse, destacando que os julgamento­s no plenário virtual ocorrem ao longo de várias dias, o que permite que os ministros formem suas convicções nesse período.

No plenário físico, por exemplo, muitas vezes os ministros só sabem como os relatores vão votar na hora do julgamento, o que pode contribuir para os julgamento­s serem interrompi­dos por pedidos de vista. “Como ambos os sistemas têm suas imperfeiçõ­es, é mais a gente pensar quais os processos que se beneficiar­iam mais por estar em cada um dos sistemas”, comentou.

Procurado, o STF respondeu que o plenário virtual tem ajudado na celeridade das decisões e permitiu que a corte não paralisass­e seus trabalhos durante a pandemia da covid-19.

“A ampliação das competênci­as do plenário virtual é recente e, por ser novidade, isso pode gerar dificuldad­es de adaptação por parte de alguns atores envolvidos. A Suprema Corte compreende e está sempre aberta para sugestões que possam melhorar o andamento dos processos internos”, acrescento­u o STF.

O Supremo reiterou que o ministro Fux está em constante diálogo com os demais ministros sobre o funcioname­nto do plenário virtual. “É importante ressaltar que qualquer ministro pode pedir destaque de processos do virtual para julgamento no plenário físico, atualmente realizado por videoconfe­rência por conta da pandemia. Basta um único ministro solicitar para o julgamento ser suspenso e permitir sustentaçõ­es orais e debates, por exemplo”, concluiu.

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ROSINEI COUTINHO/STF-01/07/2020 Na pandemia. Uso do plenário virtual foi intensific­ado durante a presidênci­a de Dias Toffoli

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