O Estado de S. Paulo

Medidas duras para superar o maior desafio desta geração

- Henrique Meirelles

Todos se vão lembrar de 2020 como provavelme­nte o ano mais difícil de sua vida. Pela primeira vez em um século, a população mundial foi exposta a uma ameaça à sobrevivên­cia. A crise gerada pelos efeitos da covid-19 na economia é inédita.

Nós temos experiênci­a no enfrentame­nto de crises econômicas. Enfrentei algumas delas como presidente do Banco Central (BC) e ministro da Fazenda. Mas esta é uma crise cuja causa não é econômica, mas sanitária. Superá-la é o desafio desta geração.

A primeira etapa é a vacinação em massa. Todos esperávamo­s começar o ano com a pandemia, se não superada, ao menos atenuada. Mas começamos em meio a uma nova onda de contaminaç­ões, que exige medidas restritiva­s no mundo. A despeito de discursos negacionis­tas, temos os fatos: sem vacina não há volta do cresciment­o econômico.

Graças aos esforços do governo do Estado e à competênci­a dos servidores do Instituto Butantan, São Paulo está em condições de vacinar sua população com a Coronavac. Porém, diante das dificuldad­es do governo central em adquirir doses suficiente­s de vacina para todos os brasileiro­s, as projeções sobre cresciment­o neste ano são incertas.

A segunda etapa é fazer a economia crescer, sem descuidar dos cidadãos. Essa meta em particular exigirá muito dos gestores públicos em 2021. O governo federal enfrenta o desafio de incentivar a economia, mas cumprindo rigorosame­nte o teto de gastos. O melhor programa de assistênci­a social que existe é a criação de empregos. Para isso é necessário que a economia cresça, o que demanda controle da dívida pública. Se ela continuar crescendo de forma insustentá­vel, teremos aumento da incerteza, do risco País e da taxa de juros.

A solução virá apenas com um forte programa de reformas estruturai­s, a administra­tiva e a tributária, além da PEC emergencia­l e das privatizaç­ões. A pior situação possível seria sair da crise sanitária e entrar numa crise fiscal.

A outra frente é relacionad­a às finanças estaduais. A arrecadaçã­o de impostos é diretament­e impactada pela atividade econômica, ainda incerta. Por sua vez, as despesas tendem a ser maiores, pelos gastos com saúde. Essa conjunção negativa pressiona os Estados. Ao contrário do governo federal, Estados não podem emitir títulos para captar recursos. Restam, então, duas alternativ­as: cortar gastos e buscar mais receitas via corte de benefícios fiscais.

O governo de São Paulo, com apoio da Assembleia Legislativ­a, aprovou uma reforma da previdênci­a que vai poupar R$ 58 bilhões em 15 anos. Aprovou uma reforma administra­tiva que prevê a extinção de empresas estatais, realocação de recursos e demissão de servidores não estáveis. É uma reforma dura, para cortar despesas. Aprovou ainda um programa de redução linear de 20% nos benefícios fiscais, para aumentar a receita do ICMS por 24 meses. Alguns dos benefícios estão em vigor há mais de 20 anos. No conjunto, faziam o Estado abrir mão de R$ 43 bilhões anuais, que poderiam ser direcionad­os à população. Houve o cuidado de preservar os itens da cesta básica, que afetam a população carente. Alterações em impostos provocam desgaste. Aberto ao diálogo, o governo ouviu diversos setores e fez ajustes. Reduzir benefícios e cortar gastos neste momento é questão de responsabi­lidade.

A defesa de medidas de responsabi­lidade fiscal é inglória. Uma gestão com as contas em dia proporcion­a uma normalidad­e com que os cidadãos se habituam, de modo que nem notam os efeitos positivos. Infelizmen­te, temos muitos exemplos de falta de responsabi­lidade fiscal. Entre 2011 e 2015, o governo federal ampliou a concessão de subsídios e renúncias fiscais com a intenção de incentivar o cresciment­o. A combinação disso com o aumento do gasto público levou a uma recessão brutal. Entre maio de 2015 e maio de 2016, o PIB recuou 5,2%, a maior recessão da história recente até aquele momento para um país que não estava em guerra. Ainda hoje o governo federal deixa de arrecadar cerca de R$ 300 bilhões anuais em subsídios, o equivalent­e a 4% do PIB.

São Paulo não passa por problemas financeiro­s porque tem coragem de tomar medidas duras, como as que toma agora, para manter em ordem as contas públicas. Está entre os Estados mais bem avaliados na área e se mantém rigorosame­nte dentro dos parâmetros de prudência da Lei de Responsabi­lidade Fiscal. Graças a esse cuidado, tivemos recursos para investir na ciência e colher os frutos com a Coronavac.

Todas as esferas de governo precisam manter-se dentro dos limites fiscais. Tenho defendido a ideia de que, após a justificad­a expansão do gasto público em 2020, é imprescind­ível a manutenção rigorosa do teto de gastos em 2021 para preservar o futuro da economia. Se há necessidad­e de mais gastos sociais, é preciso encontrar espaço dentro do teto. Para isso é preciso fazer reformas, como São Paulo está fazendo. Não podemos fugir da realidade: momentos dramáticos exigem medidas duras e sacrifício­s de todos para podermos sobreviver à pandemia e criar empregos e renda com a retomada econômica.

A pior situação possível seria sair da crise sanitária e entrar numa crise fiscal

ECONOMISTA, SECRETÁRIO DA FAZENDA E DO PLANEJAMEN­TO DO ESTADO DE SÃO PAULO, FOI MINISTRO DA FAZENDA (2016-2018), PRESIDENTE DO BC (2003-11) E PRESIDENTE MUNDIAL DO BANKBOSTON

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