O Estado de S. Paulo

STF na contramão da Constituiç­ão

- Carlos Alberto Di Franco

Tenho respeito pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se de instituiçã­o essencial para o bom funcioname­nto da democracia. Conheço alguns de seus ministros e tenho especial apreço pelo atual presidente, Luiz Fux. Seu discurso de posse foi uma peça promissora. Foi claro no seu apoio ao combate à corrupção, na sua explícita desconform­idade com o ativismo judicial, no seu deferente respeito à independên­cia e legítima autonomia dos Poderes da República e no seu renovado compromiss­o com a liberdade de imprensa e de expressão.

Mas uma andorinha só não faz verão. Infelizmen­te. A demolição da Operação Lava Jato está aí para confirmar minha realista desilusão.

Desvios, quando não corrigidos, costumam acabar mal. Minha observação se refere ao inquérito das fake news, um grave abuso jurídico em todos os sentidos, aberto em março de 2019, por iniciativa do então presidente do STF Dias Toffoli, sem alvo específico, sem fato específico, com seu relator, o ministro Alexandre de Moraes, designado a dedo, em vez de sorteado, e no qual o Supremo é vítima, investigad­or, acusador e juiz. Algo jamais visto.

O ministro Marco Aurélio Mello, atual decano da Corte, achou, então, “seriíssima” a forma de escolha do relator. Mello considerou o inquérito “natimorto” por ter sido aberto por iniciativa do próprio STF, à revelia da Procurador­ia-geral da República: “No Direito, o meio justifica os fins, jamais o fim justifica o meio. O Judiciário é um órgão inerte, há de ser provocado para poder atuar. Toda concentraç­ão de poder é perniciosa”.

Marco Aurélio Mello foi profético. Desde o início o inquérito serviu para quase tudo. Fundamento­u atos de censura à imprensa, a busca e apreensão na residência de pessoas que levantaram hashtags contrárias ao trabalho do Supremo, o bloqueio de contas nas redes sociais, prisões, etc.

O mais recente caso de excessos arbitrário­s dentro desse inquérito foi a prisão em flagrante, na noite de terça-feira 16/2, do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), após a publicação de um vídeo contendo pesados ataques a vários integrante­s do STF.

Alexandre de Moraes, em sua decisão de terça-feira, omitiu qualquer referência à imunidade parlamenta­r, garantida no caput do artigo 53 da Constituiç­ão: “Os deputados e senadores são inviolávei­s, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. É exatamente o caso que comentamos: uma opinião, certamente grotesca e ofensiva, mas que não pode justificar a prisão do parlamenta­r. Trata-se de uma aberração jurídica e de claro autoritari­smo judicial.

A prisão é uma clara e inequívoca violação da imunidade parlamenta­r. Alexandre de Moraes se equivoca até quando afirmou, durante o julgamento em que o plenário do STF manteve a prisão, que “atentar contra as instituiçõ­es, contra o Supremo, contra o Poder Judiciário, contra a democracia, contra o Estado de Direito não configura exercício da função parlamenta­r a invocar a imunidade constituci­onal do artigo 53, caput. As imunidades surgiram para a preservaçã­o do Estado de Direito”. Tal observação faz sentido no caso de atos concretos, mesmo quando cometidos por um parlamenta­r, mas não no caso de “opiniões, palavras e votos”.

É óbvio que o vídeo do deputado, com termos pesadíssim­os, contém farto material ofensivo, que, por óbvio, configura crimes contra a honra. É evidente que Silveira não pode ficar impune. Ao contrário, exige firme e rápida atuação do Conselho de Ética da Câmara, pois não há a menor dúvida de que se trata de quebra de decoro parlamenta­r. A eventual cassação do mandato não significar­ia medida abusiva. Seria uma medida legal, ao contrário de tudo o que vem sendo feito no abusivo, arbitrário e autoritári­o inquérito das fake news.

Não se combatem fake news com censura, limitações à liberdade de expressão e prisões arbitrária­s e ilegais. Quem vai dizer o que podemos ou não consumir? Quem vai definir o que é ou não fake news? O Estado? O ministro Moraes? Transferir para o Estado a tutela da liberdade é muito perigoso. E já estamos sentindo a garra do autoritari­smo. Fake news se combatem não com menos informação, mas com mais informação, e informação mais qualificad­a.

A providênci­a adotada pelo ministro Alexandre de Moraes e referendad­a pelo plenário do STF representa uma bofetada na Constituiç­ão que juraram defender. O artigo 53 é claríssimo. Impossívei­s piruetas interpreta­tivas. O deputado, de fato, foi grotesco e ofensivo. Pode e deve ser processado por crime contra a honra. Pode perder o mandato. Mas ao prender o deputado o Supremo decidiu de costas para a Constituiç­ão. E nem sequer pediu a necessária autorizaçã­o da Câmara. A gravidade da decisão tem sido apontada por renomados juristas e estudiosos do Direito.

Se a Corte Suprema se dá ao luxo de abandonar não meras regras processuai­s, mas princípios basilares da Justiça, impõe não uma vitória contra o erro, mas uma derrota ao Estado de Direito Democrátic­o. Foi o AI-5 do Supremo. Luz amarela acesa. Onze homens são donos do Brasil. Democracia em risco. Tempos sombrios.

O deputado Silveira foi grotesco e ofensivo. Pode perder o mandato. Mas prendê-lo...

JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

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