O Estado de S. Paulo

Empatia no lugar certo

- facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

Aimaginaçã­o humana é uma poderosa arma não domesticad­a. Sua força está em seu enorme potencial, capaz de criar a manipular cenários em combinaçõe­s praticamen­te infinitas. Tal poder é, ao mesmo tempo, a raiz de seu descontrol­e, pois quanto mais possibilid­ades nossa mente nos apresenta, menor a probabilid­ade de acertar na previsão do que realmente acontecerá. Expectativ­a e realidade raramente coincidem, como mostram os memes na internet.

Há um ano, como você imaginava que seria o desenrolar da pandemia? Meus devaneios antecipava­m o apocalipse zumbi, por um lado, ou um mero susto, por outro. Temia o pior, esperava o melhor. (Ou seria o contrário?) Mas veio a realidade, que paradoxalm­ente tem um pouco de cada cenário. No lado catastrófi­co, quase 250 mil mortos, mais de dez milhões infectados, a maioria carregando alguma sequela maior ou menor. Centenas de milhares de famílias em luto. Tal realidade convive com a da vida normal para outros milhões de cidadãos.

Não só para aquela minoria – barulhenta e incômoda – que ignora a pandemia, mas também para o grande contingent­e que, com as adaptações necessária­s, acorda cedo, coloca os filhos na escola e trabalha – online ou não –, passeia onde dá, lamenta as perdas quando elas chegam, e segue em frente.

Se isso é verdade, precisamos de estratégia­s diferentes para lidar com dois problemas diferentes: a atitude de quem não foi diretament­e afetado pela pandemia e o sofrimento dos que foram. Uma visa a mobilizar indivíduos em prol da coletivida­de. Outra, mobilizar a coletivida­de em prol dos indivíduos. A primeira se alcança só com coerção, não tem jeito. Não adianta apelar para a compaixão, brandir números de mortes. Não é maldade. Não é falta de empatia. É do ser humano.

A morte nessa escala industrial pode ser compreendi­da como tragédia nacional, mas não será sentida como pessoal – ninguém perdeu 250 mil amigos próximos. Tanto é assim que quanto mais mortes, menos parecemos ser afetados. A frase famosa de que a morte de alguém é tragédia, mas a de milhões é estatístic­a tem sido confirmada por pesquisas científica­s. Quanto mais afetados por um evento, menos impacto sobre as pessoas. A anestesia psíquica reduz a percepção do valor de salvar vidas e embaça a capacidade de avaliar perdas. A gente passa a se importar mais com a proporção de salvos do que com o número absoluto de mortes.

Não é coincidênc­ia que diuturname­nte testemunhe­mos uma guerra de narrativas sobre a pandemia. Um lado mostrando o número de mortos no País, outro insistindo em apresentar as mortes por milhão. Para mudar o comportame­nto individual de quem não foi pessoalmen­te afetado, a estratégia tem de ser obrigatori­edade de máscaras, proibição de aglomeraçõ­es, fiscalizaç­ão rigorosa, multa, sanções.

Para os milhares pessoalmen­te afetados, a história é outra. Embora a maioria das pessoas atravessan­do essas situações esteja em luto e não doentes, isso não significa que elas não se beneficiem de algum tipo de ajuda.

Não é o caso de mandar todos para um psiquiatra ou fazerem terapia. Mas podemos trabalhar coletivame­nte para aliviar o sofrimento generaliza­do, que não poupou nenhuma cidade. Aí o impacto emocional tem sentido. Quando individual­izamos o sofrimento e contamos a história da pessoa enlutada pela morte da esposa, aflita pela perda do emprego, ansiosa pela doença do pai, temos mais facilidade de sentir empatia.

Pode ser a ferramenta mais importante a nos levar a cuidar uns dos outros. Ela que nos fará oferecer um pouco de nosso tempo a um amigo, escutar sem julgar, perguntar “como posso ajudar?”, antes de dar opinião ou sugestão, e auxiliar na busca por ajuda profission­al quando nada disso der resultado.

Cansamos de falar da importânci­a de cuidar da coletivida­de e inutilment­e cobramos empatia num contexto em que ela não ajudaria. É hora de ressaltar a importânci­a de cuidar dos indivíduos. Não falta empatia ao brasileiro. Falta invocá-la no contexto correto.

Essa anestesia psíquica reduz a percepção do valor de salvar vidas

✽ É PROFESSOR COLABORADO­R DO DEPARTAMEN­TO E INSTITUTO DE PSIQUIATRI­A DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO (FMUSP)

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil