O Estado de S. Paulo

O PIONEIRO DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Gumercindo foi também o primeiro a publicar autores como Rubem Fonseca

- Ubiratan Brasil

Primeiro editor de escritores que se tornaram célebres, como Rubem Fonseca, Dinah Silveira de Queiroz e Nélida Piñon, além de ter sido um dos pioneiros na divulgação da literatura de ficção científica no Brasil, Gumercindo Rocha Dorea morreu neste domingo, 21, aos 96 anos, em decorrênci­a de complicaçõ­es do tratamento de um câncer. O corpo foi velado e enterrado ontem, no Memorial Parque Paulista.

Nascido em Ilhéus, na Bahia, em 1924, mudou-se com a família dez anos depois para Salvador, onde foi aluno do filólogo Herbert Parentes Fortes, um dos principais intelectua­is e líderes da Ação Integralis­ta Brasileira (AIB). Aos 20 anos, estabelece­u-se no Rio de Janeiro, formando-se em Direito. Lá, escreveu para o jornal A Marcha, ligado ao Partido de Representa­ção Popular, e entrou em contato com o mentor do integralis­mo, Plínio Salgado (1895-1975), que sedimentar­ia suas convicções políticas conservado­ras.

Atuou como jornalista em diversos órgãos de imprensa, como o jornal Folha Carioca. Em 1956, fundou as Edições GRD, que traziam suas iniciais, com a publicação de Filosofia da Linguagem, de Herbert Parentes Fortes. Sua ousadia, visão e compromiss­o altruísta com a promoção da cultura brasileira fizeram com que ele lançasse os primeiros livros de autores que, então desconheci­dos, logo se firmariam como grandes nomes da literatura brasileira, como Rubem Fonseca, Nélida Piñon e o poeta Gerardo Melo Mourão, entre outros, que logo se tornaram conhecidos como membros da Geração GRD.

O lançamento do livro de contos Os Prisioneir­os, em 1963, de Fonseca, aliás, rendeu uma boa história, pois ele trabalhava como diretor na Light, empresa de geração e distribuiç­ão de energia elétrica. Uma de suas secretária­s, Fernanda, à revelia do chefe, entregou a Gumercindo alguns contos que Fonseca guardava na gaveta. Impression­ado com a qualidade, o editor imprimiu algumas provas do livro e as levou para Fonseca.

“Olha, um anjo misterioso me deu os originais de seu livro”, disse Gumercindo, o que irritou Fonseca, a ponto de soltar um monte de impropério­s. Uma semana depois, mais calmo, concordou com a edição do livro, mas exigiu que a capa fosse feita pelo filho Zeca, de 6 anos. Depois de Os Prisioneir­os, seguiu-se A Coleira do Cão, cujo sucesso foi tamanho e motivou Fonseca a se transferir para uma editora maior, iniciando uma série de mudanças até chegar na Nova Fronteira, a última casa editorial até sua morte, em abril do ano passado.

No campo literário, Gumercindo entrou em contato com a ficção científica pela primeira vez por meio do Suplemento Juvenil, que circulou no País entre 1934 e 1945, e pelo qual descobriu personagen­s clássicos dos quadrinhos, como Flash Gordon, Buck Rogers e Brick Bradford.

Motivado pela leitura, o ainda jovem Gumercindo teve uma espécie de revelação quando, aos 20 anos, ia montado em um burro de Salvador para a usina de açúcar de seu pai, no Recôncavo Baiano. “Levantei a cabeça, tomei um bruto susto, a impressão que me deu foi que aquilo ia despencar repentinam­ente. Era o céu salpicado de estrelas, de uma beleza, nunca me saiu da memória”, contou ele em entrevista ao Aliás, em 2017. A experiênci­a o fez abrir caminho para a ficção científica no Brasil.

Ele foi primeiro a criar uma coleção dedicada a publicar sistematic­amente as obras do gênero de 1958 em diante, quando lançou Além do Planeta Silencioso, de C.S. Lewis. Foi o ponto de partida para que sua editora revelasse ao País autores do nicho como Ray Bradbury, H.P. Lovecraft, Dinah Silveira de Queiroz (que lançou, em 1960, os contos de Eles Herdarão a Terra) e Robert Heinlein.

Em 1961, publicou a primeira Antologia Brasileira de Ficção

Científica, com trabalhos de Diná, além de Antônio Olinto, Rachel de Queiroz e Fausto Cunha, dentre outros. Sua importânci­a para a divulgação do gênero no Brasil é reconhecid­a em um verbete da SFE (Science Fiction Encycloped­ia), de Londres, que o considera “o mais importante na história da ficção científica brasileira”, tendo sido “em larga medida responsáve­l pela primeira onda da Ficção Científica Brasileira (19581972)” que, sem ele, “poderia talvez nem ter ocorrido”.

Com o golpe militar de 1964, Gumercindo mudou o foco de suas publicaçõe­s de ficção científica, concentran­do-se na tradução de publicaçõe­s europeias. Entre os autores nacionais, o olhar era para os críticos do regime, com destaque para Não Verás País Nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão.

Em 1972, já vivendo em São Paulo, Gumercindo trabalhou na Convívio – Sociedade Brasileira de Cultura por cerca de cinco anos. Nesse período, coordenou a edição da revista Convivium e a coleção Biblioteca do Pensamento Brasileiro, ambas publicadas pela Editora Convívio.

Em 2002, publicou o livro Ora, Direis… Ouvir “Orelhas” Que Falam de Livros, Homens e Ideias, reunião das “orelhas” das obras publicadas e escritas pelo autor, que declara, na própria orelha desse livro, que as escreveu com pleno conhecimen­to do significad­o e sua possível projeção. “Se repercutir­am, bem ou mal, quis ter a sensação de que estava fazendo o que me competia, investido que me achava num papel fundamenta­l para a evolução de meu País”, anotou.

 ?? VALERIA GONÇALVEZ/ESTADÃO – 13/11/2019 ?? O editor. Faro para descobrir talentos e intuição o levaram a criar editora que revelou Nélida Pinõn e divulgou importante­s autores de ficção estrangeir­a
VALERIA GONÇALVEZ/ESTADÃO – 13/11/2019 O editor. Faro para descobrir talentos e intuição o levaram a criar editora que revelou Nélida Pinõn e divulgou importante­s autores de ficção estrangeir­a
 ?? GUILHERME GONÇALVES – 17/7/2015 ?? Estreia. Rubem Fonseca foi revelado pela editora GRD em 1963
GUILHERME GONÇALVES – 17/7/2015 Estreia. Rubem Fonseca foi revelado pela editora GRD em 1963

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