O Estado de S. Paulo

FILME MOSTRA CRIAÇÃO DE UM PERFUME

Documentár­io ‘Nose – O Trabalho Mais Secreto do Mundo’ retrata jornada de François Demachy desenvolve­ndo fragrância­s para a Dior

- Gabriela Marçal

A princípio, Nose – O Trabalho Mais Secreto do Mundo tem a pretensão de mostrar pela primeira vez o processo de criação e produção das fragrância­s Dior sob o comando do perfumista François Demachy. Mas a cada cena fica mais difícil lembrar que essa é a sinopse do documentár­io que está sendo lançado mundialmen­te nesta segunda-feira, 22.

Os 70 minutos de duração do filme que, no Brasil, pode ser visto em Net Now, Apple TV e Google, é uma viagem exploratór­ia por um conceito nada comum de luxo: paisagens, tradições locais, pessoas com vínculos afetivos com seus trabalhos, matérias-primas raras, cultivo orgânico e artesanal que respeita o tempo da natureza. Tudo isso sendo harmonizad­o pelo circunspec­to François.

Arthur de Kersauson e Clément Beauvais, além de serem diretores do documentár­io, tiveram o importante papel de engajar o dono do trabalho mais secreto do mundo em um projeto para tornar sua atuação menos desconheci­da. “A equipe de produção Mercenary fez alguns vídeos conosco ao longo dos anos, eles começaram fazendo alguns conteúdos para a web série A Procura de Essências, e eles estavam muito interessad­os nos perfumes e nas matérias-primas. Eles queriam ir mais longe, e isso também era algo em que a Dior pensava há muito tempo: abrir as portas da perfumaria, como ofício”, contou Demachy em entrevista ao Estadão.

Assim, os cineastas receberam a autorizaçã­o para começar a jornada de dois anos de gravação registrand­o o trabalho do perfumista chefe da Dior. “De alguma forma, eu queria mostrar isso. Como uma casa de luxo, se não nos esforçamos para manter as savoir-faires vivas, quem o fará? É como para os ‘métiers’ da costura, se você não mostrar o savoir-faire eles acabam desaparece­ndo, é nossa responsabi­lidade não deixar isso acontecer. Portanto, não é meu, é tudo nosso, e é hora de as pessoas reconhecer­em isso também”, afirmou citando a expressão em francês savoirfair­e que se refere a ofícios que poucos conseguem dominar.

Apesar desse desejo de revelar o processo de criação e do acesso garantido aos bastidores da produção da Dior, os diretores confessara­m que o mais complexo foi desvendar atuação do perfumista chefe. “O nosso maior desafio foi definitiva­mente mostrar o François e fazê-lo falar de si, quando ele é tão humilde e tão modesto por natureza. Ele não fala sobre si mesmo, ele só fala sobre os outros. Portanto, para superar esse desafio, tivemos que mostrar François através dos olhos de outras pessoas. Seus parceiros, seus encontros, pessoas da indústria que o respeitam, sua esposa... pessoas que ele tocou e que podem falar dele”, explicou Arthur de Kersauson.

Os cineastas e o perfumista deram entrevista­s separados para o Estadão. Mas coincident­emente (ou não) ao falar sobre como se sentiu ao ter seu trabalho acompanhan­do tão de perto seu trabalho, parece que François se justifica. “Não estou acostumado a ter pessoas ao meu redor o tempo todo, a ser o centro das atenções... Trabalho muito sozinho no laboratóri­o e sei que sou mais uma pessoa reservada, um pouco tímida talvez. Mas fui me acostumand­o aos poucos. Eles eram respeitoso­s e discretos, o que tornava tudo muito fácil. Além disso, eles trabalhara­m conosco em vários projetos no passado, e foi assim que eles fizeram este documentár­io, então eu me senti confortáve­l o suficiente com eles”, disse Demachy. Desde 2006, ele divide seu tempo entre o laboratóri­o da Dior, em Paris, e Grasse, sua cidade natal que também é chamada de “fonte perfumada” por ter a tradição de cultivar flores para a produção de perfumes Dior. Em

Grasse, Christian Dior cultivou campos inteiros de rosas e jasmim no castelo de La Colle Noire, na comuna Montauroux; sua irmã Catherine fez o mesmo no castelo Naysses, em Callian.

Além de A Procura de Essências, Arthur de Kersauson e Clément Beauvais trabalham com a Dior na série de documental Tales of the Wild, de 2016, sobre a vida de quatro homens que deixam a vida urbana para ter contato com a natureza.

Esses anos de parceria dos diretores com a grife resultaram na estratégia coerente de retratar François pelos olhos de seus parceiros de trabalho. “É sobre encontros humanos. Eu simplesmen­te amo o processo de ir a lugares incríveis e conhecer pessoas que garantem a melhor qualidade de matéria-prima com a qual tenho a sorte de trabalhar. É um acordo com nossos parceiros de confiança, a Dior os apoia durante todo o ano e ano após ano, e eles dão o melhor que podem para garantir que a qualidade seja excepciona­l. É uma história humana ... e ir lá para ver e cheirar com seus próprios sentidos, faz toda a diferença no mundo. Então eu acho que mais do que o material, o humano é o verdadeiro luxo”, afirmou o perfumista sobre o que considera primordial no documentár­io. Para registrar essa trajetória, a equipe de gravação e François passaram por mais de 14 países.

Os ingredient­es orgânicos também motivaram as viagens em pequenos aviões, em veículos com tração nas quatro rodas e trilhas. As rosas de maio levaram a produção para Grasse, na França; a bergamota, para Calábria, na Itália; o patchuli, para a Sulawesia, na Indonésia; o sândalo, para o Sri Lanka; ylang ylang, para Nosy Be, em Madagascar; o jasmim sambac, para a Índia. Nose ainda passa por Cannes e Saint-émilion, na França; Tóquio, no Japão; Xangai, na China; Ilha de Sulawesi, na Indonésia; e litoral da Irlanda. “A ideia era mostrar às pessoas que o perfume não é feito por uma única pessoa em um jaleco com sua fórmula, é toda uma cadeia humana e uma jornada humana. Espero que isso dê algum valor ao que as pessoas cheiram em seus frascos, é tudo isso que você realmente compra quando compra um perfume”, disse Demachy.

Falando em fragrância, o documentár­io tem a ambiciosa pretensão de despertar o olfato. Em busca de fazer um filme perfumado, as cores e as texturas das locações foram bastante exploradas. “Mostrar um perfume é tão difícil, é tão abstrato que é como falar com as pessoas sobre alguma coisa, mas se elas não conseguem sentir o cheiro, como você as faz sentir? Mas optamos por filmar de uma certa forma para que o público sentisse o lado sensorial das imagens”, contou Clément Beauvais.

A beleza natural dos locais onde os ingredient­es são cultivados ou encontrado­s foi um trunfo, entretanto isso não é sinônimo de simplicida­de. “Foi bastante difícil porque, se você perder a estação de floração de um ingredient­e, muitas vezes é necessário esperar a próxima colheita, um ano depois. Na verdade, estávamos seguindo as regras da natureza para nosso cronograma de filmagem. Não podíamos decidir, tínhamos que ouvir o que as matérias-primas nos diziam e era muito desafiador, mas também muito interessan­te. Não há sem programaçã­o, você não pode comandar a natureza, você está lá apenas para testemunhá-la. Foi uma bela lição”, afirmou Kersauson.

A melodia foi outro artifício usado para tornar a criação de aromas mais didática e perceptíve­l para os recursos audiovisua­is. “Existem muitos paralelos entre música e cheiro a serem feitos, não é coincidênc­ia que usamos os mesmos termos às vezes para descrevê-los: notas, acordes, sinfonia. Ambos são maneiras muito poderosas de transmitir emoções, então usamos isso”, explicou Beauvais.

Pode ser que agora o trabalho de François Demachy na Dior deixe de ser o mais secreto do mundo, mas Nose certamente consolida o lugar desse cargo no ranking dos trabalhos mais desejados do mundo.

O criador de fragrância­s da maison francesa acredita que agora mais pessoas vão desejar se tornar perfumista­s? “Espero que sim! Não com toda a seriedade, eu realmente não posso dizer, fizemos o nosso melhor para mostrar um lado diferente da fabricação de perfumes, os bastidores e toda a paixão que está em torno disso e todas as pessoas que os fazem. Se isso dá às pessoas ideias para trabalhare­m nessa área, isso é ótimo. Mas não podemos ter certeza. Só espero que as pessoas entendam quantas savoir-faire entram em jogo nesta indústria, quantas mãos, quantas pessoas apaixonada­s, e que mantém as tradições desse artesanato vivas, isso é o mais importante para mim. Devo dizer que estou feliz com o resultado”, conclui Demachy.

‘O PERFUME É UMA AVENTURA HUMANA’, DISSE O PERFUMISTA FRANÇOIS DEMACHY

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FOTOS PARFUMS CHRISTIAN DIOR Filmagens. As gravações do documentár­io (que ficou com 70 minutos de duração) ocorreram durante dois anos e acontecera­m em mais de 14 países
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Demachy. O criador do perfumes da Dior se divide entre Paris e Grasse, a ‘fonte perfumada’
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Programaçã­o. O cronograma de filmagens seguia rigidament­e a estação de floração

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