O Estado de S. Paulo

Mudança fora de hora

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Em meio a uma emergência nacional, não é boa hora para discutir a eliminação das vinculaçõe­s de verbas de educação e saúde.

Educação e saúde são assuntos da máxima importânci­a, decisivos para o desenvolvi­mento econômico e social, e só com muito cuidado se deve mexer em suas condições de financiame­nto. Em meio a uma emergência nacional, não é uma boa hora para discutir a eliminação das vinculaçõe­s de verbas destinadas aos dois setores. O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC Emergencia­l, escolheu a ocasião e a forma erradas para propor essa mudança. Se a ideia for aprovada, União, Estados e municípios ficarão livres da obrigação de aplicar um mínimo da receita fiscal nas duas áreas. Até a existência do Fundo de Manutenção e Desenvolvi­mento da Educação Básica (Fundeb) poderá ser comprometi­da, como alertou o senador Flávio Arns (Podemos-pr).

Pela Constituiç­ão, União, Estados e municípios devem destinar para educação e saúde pelo menos uma determinad­a porcentage­m de sua receita. Em educação, por exemplo, o poder central tem de aplicar no mínimo 18% do valor dos impostos. No caso de Estados, Distrito Federal e municípios, a parcela mínima é de 25%, incluída no bolo a receita de transferên­cias. Essas vinculaçõe­s engessam os orçamentos públicos e podem impedir o uso mais eficiente do dinheiro público. A discussão sobre o assunto começou nos anos 1990, até hoje sem resultado prático, e a ideia de eliminação desse dispositiv­o foi retomada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

O tema agora se misturou a uma questão de alcance imediato, a recriação do auxílio emergencia­l para algumas dezenas de milhões de famílias pobres. A mistura é oportunist­a, desnecessá­ria e injustific­ável. Executivo e Congresso podem explorar soluções diretament­e ligadas ao desafio de curto prazo: encontrar meios para destinar cerca de R$ 40 bilhões às famílias mais vulnerávei­s sem violar o teto de gastos ou outras normas de disciplina fiscal. Isso já foi feito em 2020. Novas possíveis soluções têm sido examinadas sem ligação com o tema das vinculaçõe­s.

Convém levar em conta a observação prudente do economista Felipe Salto, diretor executivo da Instituiçã­o Fiscal Independen­te (IFI), vinculada ao Senado. “As vinculaçõe­s têm uma razão de ser. (…) A Constituiç­ão de 1988, que colocou isso como prioritári­o, tinha o objetivo de garantir fatias do Orçamento para áreas essenciais. Mudar isso não é trivial”, acrescento­u. “É mais um ponto que vai exigir longa discussão.”

Em nota, prudência foi recomendad­a também pelo movimento Todos pela Educação: “A desvincula­ção não pode ser aproveitad­a de forma aligeirada e oportunist­a. Os recursos da educação precisam ser protegidos das pressões de curto prazo e do populismo”. Há o risco, segundo o movimento, de uma “redução substancia­l” de gastos públicos com educação.

A indispensá­vel discussão, ampla e de nenhum modo apressada, tem de envolver duas perspectiv­as. A crítica às vinculaçõe­s vem sendo feita desde os anos 90, e o assunto foi discutido com missões técnicas do Fundo Monetário

Internacio­nal. Despesas obrigatóri­as reduzem a margem de manobra do Orçamento e prejudicam a eficiência da gestão das finanças públicas e da administra­ção. Além disso, prioridade­s podem variar de um ano para outro e também entre União, Estados e municípios. Por fim, mas não menos importante, gastos obrigatóri­os podem facilitar a corrupção.

Enfim, é preciso levar em conta alguns dados importante­s e irrefutáve­is. Primeiro: a qualidade da educação no Brasil é muito inferior à de países onde inexiste a vinculação legal. Segundo: o País estaria em condição sanitária muito melhor, depois de um ano de pandemia, se o governo houvesse conduzido com seriedade e competênci­a a política de saúde, mesmo sem verbas vinculadas.

Mas a mera desvincula­ção, especialme­nte neste momento, será insuficien­te para produzir qualquer melhora na gestão pública. Nas condições atuais, desobrigar o poder público de realizar certo volume de gastos em educação e saúde resultará, quase certamente, na piora de um quadro já assustador. Melhor mesmo, neste momento, é evitar prejuízos maiores. A hora certa acabará chegando.

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