O Estado de S. Paulo

O monopólio da virtude

- ✽ Basilio Jafet

“Religiosos ou seculares, negros, brancos ou pardos, sentimos – com razão – que os desafios mais importante­s de nosso país estão sendo ignorados e que seremos a primeira geração em muito tempo a deixar para trás um país mais fraco e mais dividido do que aquele que herdamos. Talvez mais do que em qualquer outro momento da nossa história recente, precisamos de uma nova política que possa explorar e usar como alicerce o entendimen­to comum que nos une como americanos.” A frase está no último livro do ex-presidente do EUA Barack Obama, A Audácia da Esperança: reflexões da reconquist­a do sonho americano. E poderia ficar por lá, não fosse sua essência tão aderente à nossa realidade.

Realidade que também se espelha em outro trecho da obra: “Rejeito qualquer política baseada apenas em identidade racial, identidade de gênero, orientação sexual ou vitimizaçã­o geral. Acho que parte dos males que acontecem nas periferias de nossas cidades envolve um colapso cultural que não será curado apenas com dinheiro e que nossos valores, nossa vida espiritual, são tão importante­s quanto nosso PIB”.

Não bastassem as inúmeras dificuldad­es tangíveis que enfrentamo­s (pandemia, solavancos da economia, desemprego, etc.), vimo-nos diante do desafio de tentar sobreviver às dificuldad­es intangívei­s, que têm que ver com a cultura de valores.

A patrulha das redes sociais, legítimos canais da liberdade de expressão, vem causando perigoso constrangi­mento. O “nós contra eles” continua mais vivo do que nunca.

As consequênc­ias são representa­das pela desunião e pelos conflitos internos no Brasil e em praticamen­te todos os países, com os povos se mantendo divididos. A democracia sobrevive com votações por margens apertadas e nenhum respeito aos perdedores.

O direito de opinião vale se a opinião do outro convergir com a nossa. E assim é na discussão de qualquer assunto. Por exemplo, quem defende o lucro resultante do trabalho honesto é mercenário, quem defende a volta às aulas é excluído, quem defende cidades inclusivas, com habitações acessíveis, só o faz por interesse de mercado. E por aí vai.

Sabemos que as pessoas têm necessidad­e de pertencer a um grupo. E hoje isso significa abraçar integralme­nte suas ideias. Mas o radicalism­o atual está segmentand­o ainda mais uma sociedade já fatiada por renda, formação, status, posses (ou a falta completa de tudo isso).

E qual seria objetivame­nte a relevância dessa reflexão num momento que exige soluções efetivas para problemas concretos? Acontece que sentimento­s moldam o caráter e as atitudes de todos nós. Dos que estão nos Poderes Executivo, Legislativ­o e Judiciário definindo nossa vida. Dos responsáve­is pela vacinação, pelo abastecime­nto, pela educação. Dos que produzem, vendem, consomem. Sentimento­s determinam a qualidade das relações humanas e destas decorre a qualidade das cidades onde vivemos.

Polarizaçã­o e radicalism­o servem apenas ao oportunism­o e ameaçam duramente a recuperaçã­o da economia nacional. Se ter lucro é pecado, trabalhar para quê? Se ter conhecimen­to é esnobismo, por que estudar? Defender o liberalism­o não é coisa de capitalist­a ganancioso? Nesse processo, vamo-nos empobrecen­do mútua e coletivame­nte. E não apenas em termos materiais: amesquinha­mos nossa alma.

Pensar diferente significa, hoje, assumir uma bandeira ou outra. Se apresentam­os propostas para o planejamen­to urbano, a bandeira oposta nem se dispõe a ouvir. Desclassif­ica-as e rotula-as de “especulaçã­o imobiliári­a”. Despreza o que poderia ser considerad­o desenvolvi­mento imobiliári­o. Coloca na estante do esquecimen­to os benefícios desse processo para a coletivida­de. E eterniza as periferias e a falta de acesso a teto digno.

Vamos sofrer muito, e mais uma vez, os efeitos perversos dessa dicotomia nas discussões do novo Plano Diretor de São Paulo, cuja revisão está programada para este ano. O contraditó­rio é sempre bemvindo. Mas não os contrários que se alimentam do acirrament­o de conflitos e se arvoram em detentores do monopólio da virtude (aquele que não pensa igual é antidemocr­ático, até mesmo fascista).

Quem assim age ignora o que nos ensinou sobre virtude o filósofo grego Aristótele­s, no século 4.º ac. Segundo ele, a virtude é o meio de atingir a felicidade – o que todos nós, radicais ou não, almejamos.

E o que é a virtude, segundo Aristótele­s? Agir de forma virtuosa é, nas diferentes situações, adotar o meio termo entre extremos. Para chegar ao final da vida e dizer que ela foi feliz é necessário treinarmos ou nos habituarmo­s a praticar ações virtuosas e não abdicar do bom senso.

No meio termo entre extremos não se apedreja quem pensa diferente; quem acredita, por exemplo, que o individual­ismo deve ceder lugar à solidaried­ade, à busca do bem comum (que nada tem que ver com comunismo); ou quem defende a ideia de as oportunida­des serem, sim, mais igualitári­as, porém cada um deve ser responsáve­l pelo próprio sucesso.

É assim que funcionam a sociedade japonesa e, em certa medida, as escandinav­as, pautadas no genuíno respeito aos outros. Temos muito a aprender com elas e, por esse caminho, melhorar, traçar perspectiv­as melhores e evitar que as próximas décadas se transforme­m num caos, numa distopia.

✽ PRESIDENTE DO SECOVI-SP

O direito de opinião vale se a opinião do outro convergir com a nossa...

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