O Estado de S. Paulo

‘Armar população fere papel constituci­onal das Forças Armadas’

Em carta, ex-ministro pede que Supremo barre iniciativa­s do presidente que flexibiliz­am acesso de cidadãos a armamento

- Pedro Venceslau

Após pedir, em carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), uma reação da Corte à flexibiliz­ação da política de armas no Brasil, o ex-ministro da Defesa e Segurança do governo Michel Temer, Raul Jungmann, disse ao Estadão que há preocupaçã­o nas Forças Armadas em relação à ofensiva do Palácio do Planalto. “O armamento da população significa também ferir o papel constituci­onal das Forças Armadas, o que é da maior gravidade. Cria-se outro polo de violência”, afirmou. Afastado da política, o ex-ministro atua no setor privado na área de tecnologia da informação.

• Por que a flexibiliz­ação do porte de armas pode significar uma lesão ao sistema democrátic­o? Até aqui o debate sobre armamento, desarmamen­to e controles se dava no âmbito da segurança pública. O presidente transpôs esse campo e levou para a política no momento em que defende o armamento dos brasileiro­s para defesa da liberdade. Não vejo ameaça real ou imaginária. Ao mesmo tempo, ele consubstan­cia esse seu desejo com mais de 30 regulament­ações, seja através de lei, decreto ou portaria. Estamos diante de um fato muito preocupant­e para todos nós.

• Por quê?

A certidão de nascimento do Estado nacional é exatamente o monopólio da violência legal. A primeira que preocupa muito é a quebra desse monopólio. Quem dá suporte a esse monopólio, que é fundamenta­l para a sobrevivên­cia do estado democrátic­o, são as Forças Armadas. O armamento da população significa também ferir o papel constituci­onal das Forças Armadas, o que é da maior gravidade. Cria-se outro polo de violência. Por último, na medida em que não se vê ameaça externa sobre a Nação, isso só pode apontar para um conflito de brasileiro­s contra brasileiro­s. Um cenário horripilan­te de um flagelo maior, até uma guerra civil. Essa é uma preocupaçã­o que precisa de uma resposta da parte dos demais poderes, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Caso contrário, pode se repetir aqui o que aconteceu nos Estados Unidos, no Capitólio, lembrando que temos eleições em 2022. Se cada brasileiro é responsáve­l pela própria segurança, então não precisamos de segurança pública e força policial.

• Como o sr. avalia a proposta do excludente de ilicitude?

Só agrava o que está ocorrendo. Reduz os controles sobre a força policial, lembrando que o Código Penal já tem os instrument­os necessário­s para lidar com essa questão. Toda nação democrátic­a tem regulament­os rígidos para a concessão do direito à posse e ao porte de arma. Não estou me posicionan­do contrário ao cidadão que cumpriu as regras e, de acordo com a lei, tem a posse ou porte de armas. Não se trata de negar o direito a esse cidadão, mas, quando se fala em armar a população, estão dizendo outra coisa. Estão falando em uma situação que pode descambar para um clima de violência generaliza­da. É isso que temos que exorcizar.

• Não é contraditó­rio que um presidente tão ligado às Forças Armadas e com tantos militares no governo tenha adotado uma bandeira que ameaça a instituiçã­o?

Não represento as Forças Armadas, mas sei que existe uma preocupaçã­o com isso. Recentemen­te, o Departamen­to de Fiscalizaç­ão de Produtos Controlado­s do Exército baixou duas normas que visavam ao rastreamen­to de armas e munições. Isso é fundamenta­l para o esclarecim­ento e redução da violência. Por determinaç­ão do Executivo, essas duas normas foram revogadas. O general que cuidava desse departamen­to pediu exoneração. Fica claro que a disposição das Forças Armadas é pela rigidez no controle. O Executivo está jogando no sentido contrário. Mas, de fato, há apreensão.

• Como foi a repercussã­o da carta do sr. ao Supremo?

A resposta de todos os ministros do Supremo com os quais eu tenho acesso e me comunico foi no sentido de que há uma preocupaçã­o.

• Como avalia o argumento de que arma é garantia de liberdade da população?

A garantia da liberdade está na democracia, no respeito à Constituiç­ão e aos poderes. Não há ameaça pesando sobre a liberdade dos brasileiro­s e brasileira­s, real ou imaginária. Isso atende muito mais a uma preocupaçã­o política e ideológica de atender aqueles que são sua base eleitoral. Esse armamento pode nos levar a uma tragédia. Quanto mais se liberam armas, mais corremos risco que ocorra aqui o que ocorreu no Capitólio.

• Argumenta-se que a compra de armas é para caçadores e colecionad­ores, mas eles usam fuzis para essa prática?

Fuzil é uma arma de uso restrito. Não é uma arma para colecionad­or ou para clubes esportivos de tiro. Fuzil é uma arma exclusivam­ente voltada para o combate ao crime pesado e ao uso na guerra. Não faz nenhum sentido essa liberaliza­ção, pelo contrário.

• Há pressão da indústria das armas?

Ela sempre existiu. Sempre lidamos com ela.

• Como vê o argumento de que os brasileiro­s têm o direito de se proteger e, se muitos possuírem armas, o criminoso pensaria duas vezes antes de agir?

A legislação já permite isso. Comprovada a necessidad­e e a capacidade técnica e psicológic­a, o brasileiro que cumprir os mandamento­s legais tem direito a isso. É uma falácia. A primeira vítima é a própria pessoa. Onde você vai guardar uma arma em casa? Na gaveta? Embaixo da cama? Todo bandido tem a vantagem da surpresa. E, se for para cada brasileiro dar conta da própria segurança, para que segurança pública? Quando uma população é armada vemos o que acontece na Síria, Iraque e Venezuela. Há uma tragédia nacional.

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JF DIORIO/ESTADÃO - 5/10/2019 Ex-ministro. Jungmann enviou carta ao STF nesta semana

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