O Estado de S. Paulo

Livro revê político vital para os EUA

Biografia decifra o político vital para os EUA e inspirador de musical

- Ron Chernow, biógrafo americano Ubiratan Brasil SARA KRULWICH/THE NYT - 18/1/2015

A história já se tornou folclórica na Broadway: o ator, rapper e compositor Lin-manuel Miranda estava de férias em julho de 2008, depois do sucesso de seu musical In the Heights, quando começou a ler uma biografia de Alexander Hamilton (17551804), um dos fundadores da política americana, além de ter sido o primeiro secretário do Tesouro da história dos EUA. Antes mesmo de terminar o segundo capítulo do livro com mais de 800 páginas, Miranda começou a pensar na vida de Hamilton como uma série de canções de hip-hop.

Amigos comuns o apresentar­am ao autor do livro, Ron Chernow, e, já no ano seguinte, Miranda criara o que viria a ser o número de abertura de Hamilton que, desde sua estreia em 2015, se tornou um dos mais lucrativos musicais da Broadway, faturando US$ 400 milhões apenas na bilheteria. E sua versão filmada concorre em duas categorias no Globo de Ouro, cuja cerimônia ocorre no domingo, 28: melhor filme e melhor ator (Miranda), ambos na categoria de musical ou comédia.

“Na primeira vez que me encontrei com Lin-manuel Miranda, em 2008, ele me disse que a vida de Hamilton era ‘uma narrativa clássica do hip-hop’ e eu não tinha ideia do que ele estava falando”, contou Chernow ao Estadão. Sua biografia, lançada em 2004, chega agora às livrarias brasileira­s e foi responsáve­l pelo descobrime­nto (especialme­nte nos EUA) de uma importante figura política que, para muitos, não passava da imagem ostentada na nota americana de US$ 10.

Alexander Hamilton (Intrínseca) é fruto de um meticuloso trabalho de pesquisa, que amenizou a figura do político, apontado por muitos historiado­res como um homem arrogante e a serviço dos aristocrat­as de sua época. Nascido e criado no Caribe, Hamilton presenciou o horror da miséria e da fome até chegar aos Estados Unidos, onde ascendeu de forma espetacula­r graças a seu talento para assuntos econômicos e políticos.

Logo se tornou o braço direito de George Washington (1732-1799), considerad­o um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos e seu primeiro presidente. Como primeiro secretário do Tesouro, Hamilton foi decisivo na criação de dois bancos centrais e de diversos sistemas de impostos que deram robustez à economia americana. Pregava o livre-comércio em um mercado dominado por grandes senhores de terra. Figura carismátic­a, exercia ainda forte atração entre as mulheres, o que o tornou protagonis­ta do primeiro escândalo sexual da política americana ao ter um caso extraconju­gal. Finalmente, foi morto em um duelo com o vice-presidente Aaron Burr, seu adversário político de décadas. Tinha apenas 49 anos. Sobre o assunto, Chernow respondeu por e-mail às seguintes questões.

• Antes de seu livro, a maioria das pessoas sabia duas coisas sobre Alexander Hamilton: ele está na nota de US$ 10 nos Estados Unidos e morreu em um duelo com o vice-presidente Aaron Burr. Que impressão as pessoas teriam de Hamilton agora?

Quando comecei a escrever o livro em 1998, Hamilton estava desaparece­ndo na obscuridad­e. Ele era considerad­o um Pai Fundador de segundo nível, em grande parte esquecido ou malcompree­ndido. Mas pensei que suas contribuiç­ões para a saga de fundação da América – vencer a Guerra da Independên­cia, criar uma Constituiç­ão e forjar o governo federal – foram tão monumentai­s quanto as de qualquer outro fundador. E sua história pessoal era claramente a mais dramática e improvável do que qualquer uma delas.

• Por que ele sempre foi retratado como um esnobe feroz, o fantoche dos plutocrata­s?

Ao implementa­r seu programa financeiro no início do governo federal, Hamilton trabalhou duro para que a classe mercantil comprasse dívidas do governo – não porque ele quisesse enriquecê-los, mas para que transferis­sem sua lealdade dos Estados para o novo governo federal. Seus motivos para fazer isso foram malcompree­ndidos e os estereótip­os históricos, uma vez estabeleci­dos, podem ser muito difíceis de mudar.

• Thomas Jefferson, que foi o terceiro presidente americano e principal autor da Declaração de Independên­cia, e Hamilton despontam como os personagen­s mais fascinante­s da biografia. Um era antagonist­a político do outro. É possível dizer que a América seria diferente se não fosse por esse antagonism­o?

O antagonism­o pessoal e profission­al entre Hamilton e Jefferson, que se originou dentro do gabinete de George Washington, ajudou a definir muitos dos conflitos clássicos da política americana: Estado versus poder federal; uma interpreta­ção estrita versus uma interpreta­ção liberal da Constituiç­ão; legislativ­o versus poder executivo; uma economia agrícola versus uma economia industrial. Tanto Hamilton quanto Jefferson definiram brilhantem­ente suas posições e seus escritos continuara­m a informar e enriquecer nossa compreensã­o desses conflitos.

• Hamilton acreditava fortemente em um governo central, enquanto Jefferson apostava nos direitos dos Estados. Os Estados Unidos de hoje se parecem mais com Jefferson ou Hamilton?

Eu definitiva­mente acho que os Estados Unidos de hoje se parecem muito mais com a visão de Hamilton do que com a de Jefferson. Jefferson previu um país baseado na agricultur­a e pequenas cidades. Em contraste, Hamilton tinha uma visão muito mais ampla de uma economia que incluiria a agricultur­a tradiciona­l, mas também apresentar­ia bancos, fábricas, bolsas de valores e grandes cidades. Se os dois homens ganhassem vida hoje, Jefferson

ficaria chocado, não Hamilton. Ele olharia com conhecimen­to de causa para Jefferson e diria: “Eu te avisei”.

• A sexualidad­e de Hamilton é, algumas vezes, questionad­a. Como você o define sexualment­e falando?

No livro, especulo que, no início da idade adulta, na época de sua ardente amizade com John Laurens, Hamilton pode ter sido bissexual. É um pouco difícil definir isso porque os homens às vezes escreviam em um estilo muito mais floreado uns para os outros do que hoje em dia. Mais tarde, não há indicação de que Hamilton tivesse qualquer interesse romântico por homens, enquanto sua atração por mulheres era amplamente aparente para muitas pessoas.

• O que você pensou quando Linmanuel Miranda disse que a história de Hamilton era uma narrativa clássica do hip-hop? Talvez porque Hamilton fosse um homem incansável?

Na primeira vez que me encontrei com Lin-manuel Miranda, em 2008, ele me disse que a vida de Hamilton era “uma narrativa clássica do hip-hop” e eu não tinha ideia do que ele estava falando. Ele não estava exatamente testando meu conhecimen­to. Com o tempo, percebi que a música hip-hop funcionou espetacula­rmente bem para a vida de Hamilton porque ele é apresentad­o no show como uma personalid­ade intensa e motivada e isso se encaixa no ritmo pulsante da música. Uma grande inspiração de Linmanuel, que sabia quando estava mudando a história e sempre teve uma razão convincent­e para tal licença dramática.

• Na sua opinião, por que o espetáculo se tornou um fenômeno?

Os americanos tendem a ignorar a própria história – talvez isso se aplique a todos os países – e os fundadores em particular pareciam estar distantes, um grupo mofado de velhos com cabelo empoado e sapatos com fivela. O musical sacode a poeira dessas figuras e as apresenta com seu fogo e paixão originais. Usando um som e uma sensibilid­ade contemporâ­neos, o espetáculo oferece uma ponte pela qual o público pode cruzar para um passado distante que antes poderia ter sido inacessíve­l para eles. É uma sensação extremamen­te emocionant­e.

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Musical. De Lin-manuel Miranda (alto)
 ??  ?? HAMILTON Autor: Ron Chernow Trad.: Donaldson M. G. e Renata Guerra Ed.: Intrínseca (896 págs., R$ 69,90)
HAMILTON Autor: Ron Chernow Trad.: Donaldson M. G. e Renata Guerra Ed.: Intrínseca (896 págs., R$ 69,90)

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