O Estado de S. Paulo

DUAS VEZES VILLA

Discos com trios e peças para coro oferecem novos olhares para a produção do compositor brasileiro

- João Luiz Sampaio

Por que não gravar os trios de Heitor Villa-lobos? O assunto voltava sempre nas conversas entre o maestro e violinista Claudio Cruz e o violonceli­sta Antonio Meneses. Mas o plano esbarrava sempre na mesma parede: faltava um pianista.

“São obras difíceis para todos, mas a parte do piano é monstruosa”, conta Cruz. “E tocar os trios exigiria uma integração enorme. O grupo precisa soar como uma unidade, desenvolve­r um só pensamento em termos de sonoridade.”

Mas a resposta estava ali perto o tempo todo. Depois de reger alguns concertos com o pianista Ricardo Castro, Cruz procurou Meneses: “Ele é o cara”.

E foi assim que um verdadeiro dream team da música brasileira, que inclui ainda o violista Gabriel Marin, se reuniu para gravar o álbum dedicado a Villalobos. Lançado em formato digital pelo Selo Sesc, é um acréscimo fundamenta­l à discografi­a do compositor; e, neste começo do ano, não foi o único: com o Coro da Osesp e pelo selo Naxos, acaba de sair álbum com as transcriçõ­es de Villa-lobos de peças célebres para piano.

A gravação do Selo Sesc, realizada no Estúdio Monteverdi, de André Mehmari, após dois anos de preparação, reúne os três trios para piano, violino e violoncelo e o trio para violino, viola e violoncelo. O primeiro grupo é dos anos 1910; o último trio foi escrito nos anos 1940.

Para Cruz, são dois compositor­es diferentes os que se revelam por meio das obras. “Os trios com piano foram escritos quando Villa tinha 25, 26 anos. Ele ainda não havia tido contato com a música de Stravinski, com a cena experiment­al europeia. Havia a influência da música francesa, de Debussy, mas é impression­ante como ele já era um autor fantástico. O Trio n.º 1 pode ser comparado a qualquer obra do gênero”, diz Cruz.

O trio de cordas, por sua vez, revela, para o violinista, “a mesma cabeça, mas com um knowhow diferente, influencia­do pela linguagem do século 20”.

Nos últimos anos, Cruz tem gravado a obra de autores brasileiro­s, sempre com a preocupaçã­o de estabelece­r novas edições de partitura. Foi assim com os quartetos de Alexandre Levy ou Glauco Velasquez. E também com os trios.

“No material disponível, há muitas notas erradas, disparidad­es entre as partes do piano e dos outros instrument­os. Então é preciso revisar a obra, fazer escolhas”, ele explica. “E o problema nem sempre é o manuscrito, como se costuma dizer. Muitos equívocos estão nas primeiras edições das obras. Se você olha o manuscrito do Trio nº 1, por exemplo, ele é muito claro, e os erros aparecem na edição da Max Eschig.”

Desafio semelhante foi enfrentado pela maestrina Valentina Peleggi ao montar a gravação das transcriçõ­es para coro que Villa-lobos fez de peças para piano de Bach, Schumann, Schubert, Rachmanino­v, Massenet e Beethoven. Elas foram escritas dentro do projeto de Canto Orfeônico, iniciativa de ensino musical empreendid­a pelo compositor, que tinha a música coral como foco principal.

“Foram quase dois anos de pesquisa e preparação das partituras, corrigindo notas erradas, buscando outras obras corais para compreende­r as intenções do compositor. Mas é fascinante o trabalho, pois permite a você entender o que ele buscava em termos de sonoridade”, explica Peleggi, diretora da Sinfônica de Richmond (EUA).

Entre as peças reimaginad­as por Villa-lobos para serem cantadas estão prelúdios e fugas de Bach, valsas de Chopin e a Sonata Patética, de Beethoven. “É impression­ante perceber que, quando traduz para o coro as obras, o compositor encontra cores e atmosferas que não estão no original, consegue criar sonoridade­s muito próprias e contrastan­tes, explorando as diferenças de cada naipe de vozes”, diz a maestrina.

Legado. Claudio Cruz já tem engatilhad­os outros projetos de discos dedicados a Villa-lobos. E, com o Quarteto Carlos Gomes, gravou os quartetos de Meneleu Campos, compositor paraense do início do século 20 – o disco será lançado no meio do ano pelo Selo Sesc. Aqui também o registro foi acompanhad­o da edição das partituras.

“Para mim é cada vez mais clara a importânci­a de deixar um legado para as próximas gerações. O fato de sermos os primeiros brasileiro­s gravando os trios significou a necessidad­e de oferecer um registro de referência. E a edição das partituras faz com que elas fiquem disponívei­s a outros músicos. Um dos problemas do nosso meio musical é o modo como algumas pessoas estão só preocupada­s em usufruir estruturas criadas por outros, sem a preocupaçã­o de deixar algo construído para quem vem depois.”

ÁLBUM REÚNE VERDADEIRO ‘DREAM TEAM’ DA MÚSICA BRASILEIRA

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ARQUIVO/ESTADÃO Obra. Em transcriçõ­es para peças escritas para piano, autor criou versões pessoais de Schubert, Bach e Beethoven

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