O Estado de S. Paulo

MARCAS OBAMA E CLINTON

Ex-presidente­s viraram criadores de conteúdo cultural.

- Karen Heller / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU

Tempos atrás, os ex-presidente­s buscavam refúgio numa vida mergulhada em sépia. Eles se mudavam para bucólicas propriedad­es rurais com nomes elegantes. Jogavam golfe. Escreviam memórias, o que se tornou uma prática-padrão póspresidê­ncia, às vezes porque precisavam de dinheiro, por mais estranho que pareça hoje.

“Não tem nada mais patético que um ex-presidente”, disse John Quincy Adams, que trabalhou na Câmara dos Representa­ntes dos Estados Unidos por quase duas décadas depois da Casa Branca.

“Depois da Casa Branca, o que há para fazer senão beber?”, perguntou Franklin Pierce, que o fez, prodigiosa­mente.

Outros ex-presidente­s se saíram melhor. Thomas Jefferson fundou a Universida­de da Virgínia. William Howard Taft se tornou presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos. Herbert Hoover e Jimmy Carter desfrutara­m de pós-presidênci­as mais bem-sucedidas do que seus mandatos na Casa Branca.

Os Clinton e os Obama estão trilhando caminhos decididame­nte diferentes. Eles lançaram fundações, biblioteca­s e museus, além de iniciativa­s globais, porque é isso que ex-presidente­s e primeiras-damas fazem agora. Mas também se tornaram grandes criadores de conteúdo. Vivem em nossas telas e em nossos ouvidos, percorrem nossos feeds de mídia social. Produzem filmes e programas de televisão. Como estamos em 2021, todos eles apresentam podcasts. Os Clinton estão escrevendo livros de suspense a serem publicados ainda este ano. Os casais fizeram parceria com forças criativas como Netflix, History Channel, Apple, Spotify e Bruce Springstee­n.

Todos eles têm Grammys. Indústria Americana, produzido pela empresa Higher Ground dos Obama, ganhou o Oscar de melhor documentár­io no ano passado. E seu Crip Camp: Revolução pela Inclusão está na lista de candidatos deste ano.

Eles se tornaram marcas. E, para falar a verdade, parecem estar se divertindo bastante.

“Política pública, cultura e entretenim­ento estão muito interligad­os hoje em dia”, escreveu Hillary Clinton por e-mail, enviado por seu porta-voz. “Em todas as mídias, existem novas oportunida­des para contar histórias importante­s e levantar a voz de pessoas que estão mudando o mundo. E, se eu puder me divertir um pouco fazendo tudo isso, escrevendo um mistério com minha amiga Louise Penny, melhor ainda!”.

“Não existe manual para uma pós-presidênci­a como esta”, disse Katie Hill, porta-voz dos Obama. “O presidente e a senhora Obama compreende­ram o poder da narrativa. Eles usaram sua posição única para compartilh­ar as histórias das pessoas que os inspiraram.”

Carreira. Os dois casais saíram da Casa Branca aos 50 e poucos anos, abençoados com as dádivas do tempo e das muitas opções de remuneraçã­o. Duas décadas depois de partir, Bill Clinton ainda está mais jovem que o atual ocupante. “A idade e a medicina moderna mudam totalmente a história. Os presidente­s não viviam tanto depois de seus mandatos”, disse Jeffrey Engel, diretor do Centro de História Presidenci­al da Southern Methodist University.

Eles se adaptaram aos tempos e dominaram Hollywood e as mídias sociais para compartilh­ar as histórias dos outros – “história” sendo o termo preferido de ambos os casais. A Higher Ground tem uma dúzia de funcionári­os. Hillary Clinton e Chelsea Clinton fundaram a Hiddenligh­t Production­s para “compartilh­ar as histórias de líderes – celebrados e não celebrados”, disse a candidata presidenci­al de 2016 em comunicado à imprensa. Ao criar séries de televisão, filmes, podcasts, conteúdo digital e best-sellers, os Obama e os Clinton estão alcançando públicos maiores, mais jovens e mais diversific­ados do que os dos livros de memórias da Casa Branca.

Barack Obama, autor do elogiado livro de memórias Uma Terra Prometida (publicado pela Companhia das Letras, assim como todos os livros dos Obama), há muito celebra seu voraz consumo da cultura popular com sua lista anual de livros, músicas e filmes favoritos. Seu podcast Renegades: Born in the USA, com Springstee­n, lembra dois boomers conversand­o sobre suas paixões por cervejas. Em seu terceiro episódio, o 44º presidente canta mais do que Bruce. (Mas Obama é um “renegado”? Fala sério).

Mesmo um livro de memórias pode virar algo totalmente diferente, uma franquia global e um evento. Minha História, de Michelle Obama, vendeu mais de 15 milhões de cópias, com o reforço de um documentár­io e uma turnê em arenas com convidados especiais e merchandis­ing. Com as edições de bolso e para jovens leitores estreando esta semana, seu apelo mostra poucas chances de diminuir. Hillary e Chelsea Clinton transforma­ram seu livro de 2019, The Book of Gutsy Women: Favorite Stories of Courage and Resilience (O livro das mulheres corajosas: histórias favoritas de coragem e resiliênci­a, em tradução livre) numa nova série de documentár­ios da Apple TV Plus, criada por sua produtora, que elas mesmas apresentar­ão.

Este mês, os Obama vão lançar Waffles + Mochi, na Netflix, uma espécie de Vila Sésamo gastronômi­ca internacio­nal com um punhado de celebridad­es convidadas. Entre os outros projetos da Higher Ground, estão uma série de televisão sobre Frederick Douglass, um filme biográfico sobre o líder dos direitos civis Bayard Rustin dirigido por George C. Wolfe e um filme baseado no romance Passagem para o Ocidente , de Mohsin Hamid, estrelado por Riz Ahmed.

Histórias. A empresa está “configurad­a como uma plataforma para contar os tipos de histórias que incorporam os valores e interesses dos Obama”, disse Joe Paulsen, chefe de estratégia e negócios da Higher Ground. “Temos espaço na Netflix e no Spotify. Se acreditamo­s num escritor, acreditamo­s numa ideia, podemos defendê-la.” Malia Obama, que compartilh­a o interesse de seus pais por entretenim­ento, está se juntando à equipe de redatores do projeto Hive, de Donald Glover, na Amazon. (O fundador da Amazon, Jeff Bezos, é dono do Washington Post).

Ao contrário da crença de John Quincy Adams, “o melhor trabalho do mundo é ser ex-presidente”, diz Engel. “Na maioria das vezes, eles não precisam fazer nada que não queiram. As pessoas pagam pela sua participaç­ão. Aonde quer que você vá, as pessoas se levantam e aplaudem.”

Houve um tempo em que expresiden­tes se preocupava­m até com a possibilid­ade de lucrar com seu serviço público. O CEO da Fundação LBJ, Mark Updegrove, autor de Second Acts: Presidenti­al Lives and Legacies After the White House, diz que, mesmo depois de deixar o cargo, Truman continuou tão cuidadoso para “baratear o cargo” que, nos autógrafos de livros, se recusava a assinar com uma caneta de marca reconhecív­el, como uma Cross ou uma Bic, “por medo de que pudesse parecer uma propaganda corporativ­a”, e bancava os custos de postagem para enviar cópias aos leitores. Em 1958, a Lei dos Ex-presidente­s ajudou a aliviar muitos encargos financeiro­s, proporcion­ando aos ex-presidente­s executivos uma série de benefícios, incluindo postagem.

Os presidente­s posteriore­s, muitos depois de décadas em cargos públicos, aprenderam que poderiam ser bem remunerado­s por algumas horas de seu tempo. O entrevista­dor David Frost pagou US$ 600 mil a Richard Nixon e uma parte dos lucros para contar sua história. Gerald Ford recebeu para participar de conselhos corporativ­os. Em 1989, Ronald Reagan estabelece­u o padrão ouro quando recebeu US$ 2 milhões por dois discursos de 20 minutos e algumas aparições públicas no Japão, abrindo as comportas para críticas. É uma prática que os Clinton e Obama continuara­m.

Nem todo ex-presidente gosta de ficar sob os holofotes ou cortejar Hollywood. George W. Bush trabalha com os Clinton no socorro de desastres e com os bolsistas de liderança presidenci­al, mas optou por uma vida mais tranquila, preferindo pintar quadros.

Antes de deixar a Casa Branca, os Clinton e os Obama nunca geraram o tipo de riqueza que têm agora, embora Barack Obama tenha recebido um grande pagamento com o sucesso de seus livros anteriores, Sonhos de Meu Pai e A Audácia da Esperança, que até agora superou seu salário no Senado dos Estados Unidos. Os Obama supostamen­te ganharam cerca de US$ 65 milhões com seus livros de memórias, negociados pelo advogado de Robert Barnett, que também represento­u os Clinton e George W. e Laura Bush.

Bill Clinton, o primeiro (e, até agora, único) candidato à presidênci­a a tocar saxofone na televisão, “sempre foi um leitor voraz e um fã de longa data da cultura pop – da música e dos esportes e até da televisão e do cinema”, diz seu porta-voz Angel Urena. “Dar vida a esses projetos deu a ele a chance de experiment­ar coisas novas, explorar diferentes formas de contar histórias e trabalhar com pessoas que ele admira em sua ampla gama de interesses. Tem sido divertido, emocionant­e e gratifican­te.”

E aí vem o livro de suspense, que pode ser mais divertido do que escrever um livro de memórias de 957 páginas. O expresiden­te está fazendo mais uma parceria com o rolo compressor editorial James Patterson após seu sucesso de 2018 com O Dia em que o Presidente Desaparece­u, que vendeu mais de 2 milhões de cópias. Seu novo livro, lançado em junho, é intitulado The President’s Daughter (A filha do presidente). Não é uma sequência, embora ela também desapareça. State of Terror (Estado de terror), o projeto de sua esposa com Penny, a aclamada escritora de mistérios, agendado para outubro, fala sobre uma secretária de Estado enfrentand­o, de acordo com o comunicado à imprensa, “o mundo complexo da diplomacia e da traição de alto risco”.

A vida dos ex-ocupantes do Salão Oval pode se alterar mais uma vez. Antes da política, o mais recente ex-presidente foi apresentad­or de reality show que exibia seu nome em tudo, de cassinos a filés de carne. Quanto ao que Trump pode fazer a seguir, Updegrove diz: “todas as apostas estão na mesa. Ainda não vimos nada”.

LANÇARAM MUSEUS, BIBLIOTECA­S E FUNDAÇÕES, ALÉM DE AÇÕES GLOBAIS

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KEVIN LAMARQUE / REUTERS
 ?? JESSICA RINALDI/REUTERS – 20/10/2006 ?? Barack Obama. Autor do elogiado livro de memórias ‘Uma Terra Prometida’, ele publicou ainda ‘Sonhos do Meu Pai’ e ‘A Audácia da Esperança’
JESSICA RINALDI/REUTERS – 20/10/2006 Barack Obama. Autor do elogiado livro de memórias ‘Uma Terra Prometida’, ele publicou ainda ‘Sonhos do Meu Pai’ e ‘A Audácia da Esperança’
 ?? ANDREW KELLY/REUTERS – 12/9/2017 ?? Hillary Clinton. Seu livro ‘O Que Aconteceu’ teve um grande lançamento em 2017
ANDREW KELLY/REUTERS – 12/9/2017 Hillary Clinton. Seu livro ‘O Que Aconteceu’ teve um grande lançamento em 2017

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