O Estado de S. Paulo

A pressa é inimiga da Constituiç­ão

- ✽ José Serra ✽ SENADOR (PSDB-SP)

Oescritor português José Saramago é conhecido por tiradas geniais que nos fazem refletir diante de encruzilha­das. Lembreime de uma delas em plena votação da chamada PEC Emergencia­l: “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo”. O Senado aprovou celerement­e uma emenda constituci­onal que autoriza o pagamento do auxílio emergencia­l, mas, ao mesmo tempo, cobre a Constituiç­ão com uma cortina de fumaça que compromete a credibilid­ade do nosso arcabouço fiscal.

Nosso país enfrenta a pior fase da pandemia, com nosso sistema público de saúde próximo do colapso. Diante disso, infelizmen­te, o governo vem sendo negligente: critica o uso de máscaras, condena o distanciam­ento e dificulta a vacinação.

Na discussão da PEC Emergencia­l o governo adotou uma estratégia que consiste em acuar o Congresso, com o objetivo de aprovar a agenda de austeridad­e improvisad­a pelo Ministério da Economia. Usou seu poder para introduzir na PEC um dispositiv­o que torna viável o pagamento de um benefício emergencia­l ao mesmo tempo que, em troca, embute uma obscura reforma estrutural nas demais partes da emenda.

Às limitações do sistema semipresen­cial de votações junta-se uma celeridade que torna a discussão precipitad­a e os resultados, confusos. Analisando a proposta com a experiênci­a que tive de relator dos capítulos de finanças públicas na Constituin­te, percebi a armadilha em que fui colocado: sem poder votar contra o auxílio emergencia­l, nem concordar com que se manipule a Constituiç­ão.

Julgo que emendar a Constituiç­ão implica responsabi­lidade análoga à tarefa de elaborá-la. A maioria dos estudiosos classifica as alterações constituci­onais como emanadas do poder constituin­te. Assim sendo, sua execução exige o máximo de cautela, a fim de evitar casuísmos e imprudênci­as com a norma jurídica mais importante da fundação do Estado.

O próprio texto constituci­onal se protege de mudanças improvisad­as e arriscadas: estabelece que não se pode emendá-lo na vigência de situações emergencia­is, como o estado de defesa, o estado de sítio e a intervençã­o federal. Esse dispositiv­o, aliás, remonta à Constituiç­ão de 1934, em resposta à Emenda Constituci­onal n;° 3, promulgada em plena vigência do estado de sítio decretado em 1926 pelo presidente Artur Bernardes.

A pandemia permanece assolando nosso país e impedindo a volta da normalidad­e. Neste contexto, várias comissões do Congresso Nacional nem sequer voltaram a funcionar. Isso por si só já justifica postergar a votação de emendas constituci­onais, a não ser que haja absoluto consenso, como no caso do Fundeb.

Mas o texto da PEC Emergencia­l exige consideraç­ões acerca das duas dimensões: uma emergencia­l, outra estrutural. Considero a emergência a dimensão mais importante para enfrentar o vírus e nela constato uma tática do tipo tudo ou nada. A medida torna viável o pagamento de auxílio emergencia­l limitado a R$ 44 bilhões, o que pode ser considerad­o o plano oficial do governo para enfrentar o vírus neste ano.

Assim como não foi possível combater a emergência sanitária no ano passado com R$ 5 bilhões – de acordo com os planos do governo no início da crise –, é improvável que a estimativa atual seja suficiente para enfrentar todos os efeitos da pandemia em 2021. Para resolver esse impasse previsível a PEC apresenta outra saída emergencia­l: suspender todas as regras fiscais do País. Uma emenda comparável a um AI-5 sobre o sistema fiscal previsto na Constituiç­ão.

Um plano fiscal para enfrentar a crise é o mínimo que se espera de um governo responsáve­l. Não temos plano. Nem mesmo o Orçamento anual foi aprovado.

Ademais, a proposta encaminhad­a à Câmara compromete a credibilid­ade do nosso arcabouço fiscal. Criam-se regras fiscais com lacunas jurídicas e incentivos à contabilid­ade criativa, levando ao cresciment­o do gasto público.

Sabe-se que a crise fiscal tem um viés eminenteme­nte federativo. Hoje, 68% das despesas com funcionári­os e 84% das verbas destinadas ao consumo de bens e serviços têm sua origem nos Estados e nos municípios. A PEC 186 estabelece que as medidas de ajuste fiscal a serem adotadas por governador­es e prefeitos limitem a despesa corrente a um máximo de 95% da receita corrente.

Uma análise, mesmo superficia­l, revela que esse porcentual pode estimular o aumento da despesa: governador­es e prefeitos que gastam menos de 95% poderão aumentar as despesas até esse patamar, especialme­nte em épocas de eleição. O Executivo poderá aumentar os gastos correntes dando aumentos salariais e subsídios, pois a regra tem por alvo o gasto passado, mas não o futuro.

Numa situação emergencia­l como a que vivemos hoje, não se deveria sequer pensar em alterar regras estruturai­s do Estado brasileiro. O momento não é propício, o contexto é temerário. A sociedade tem direito a esperar de nós, seus representa­ntes na Câmara e no Senado, que o processo legislativ­o seja seguido com absoluto rigor.

Em poucas palavras: a pressa é inimiga da Constituiç­ão.

Sociedade tem o direito de esperar que processo legislativ­o seja seguido com absoluto rigor

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