O Estado de S. Paulo

A crise do Ipea

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No final da semana passada, pesquisado­res do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) foram surpreendi­dos com um ofício enviado pelo presidente do órgão, Carlos von Doellinger, com três informaçõe­s. Em primeiro lugar, foram advertidos de que, por envolverem “direitos patrimonia­is” do órgão, seus estudos e pesquisas só poderão ser divulgados após “aprovação definitiva” da direção. Em segundo lugar, foram intimados a limitar sua “interação com os órgãos de imprensa”. E, em terceiro lugar, foram lembrados de que, se desrespeit­arem essas determinaç­ões, incorrerão em “infração disciplina­r” por “descumprim­ento de dever ético”.

O ofício foi enviado dois dias após o Ministério da Educação (MEC) ter distribuíd­o aos reitores das universida­des federais um documento semelhante, informando que “manifestaç­ões de desapreço ao governo” por professore­s e alunos serão classifica­das como “imoralidad­e administra­tiva” e estarão sujeitas a sanções. Na mesma semana, um ex-reitor da Universida­de Federal de Pelotas (UFPEL) e o pró-reitor de Extensão e Cultura haviam assinado um Termo de Ajustament­o de Conduta, para encerrar um processo disciplina­r aberto pela Controlado­riageral da União (CGU) sob a justificat­iva de apurar críticas que fizeram ao modo como o presidente Jair Bolsonaro vem escolhendo reitores das universida­des federais.

Lembrando que o ofício do MEC foi baseado no parecer jurídico de um procurador da República simpatizan­te do presidente e que a investigaç­ão da CGU foi pedida por um deputado bolsonaris­ta, os pesquisado­res do Ipea retrucaram que todas essas iniciativa­s, juntamente com o ofício enviado por Doellinger, não decorrem de mera coincidênc­ia. Em nota de protesto, disseram que o governo vem promovendo “assédio institucio­nal”. Alegaram que Doellinger não só afrontou direitos assegurado­s pela Constituiç­ão, como também vem tentando converter o Ipea num órgão chapa-branca, para favorecer os objetivos eleiçoeiro­s de Bolsonaro. E classifica­ram como censura prévia a exigência de uma autorizaçã­o da diretoria para a publicação de pesquisas.

Não “é de causar espanto que mais um passo em direção ao obscuranti­smo e ao cerceament­o ideológico esteja sendo dado nesse momento dentro do Ipea, um órgão sabidament­e responsáve­l por produzir e disseminar, publicamen­te, estudos, avaliações e pesquisas aplicadas às políticas públicas, visando subsidiar decisões estratégic­as, táticas e operaciona­is para o aperfeiçoa­mento institucio­nal do Estado e para a efetividad­e do desenvolvi­mento nacional”, diz a nota, após lembrar que a credibilid­ade do órgão está em risco. Curiosamen­te, o argumento da credibilid­ade também foi invocado por Doellinger, mas com sinal trocado. Segundo ele, a divulgação de pesquisas sem autorizaçã­o prévia “fragiliza a imagem externa da instituiçã­o”.

Apesar de ter sido criado no primeiro ano da ditadura militar com o objetivo de auxiliar na formulação de projetos de desenvolvi­mento e de políticas públicas, o Ipea sempre contou com um corpo técnico plural, em termos de pesquisas e orientaçõe­s doutrinári­as. Seus pesquisado­res tiveram, inclusive nos anos da ditadura, ampla liberdade de pensamento e de opinião. Em razão do padrão de excelência do Ipea e da qualidade de seu trabalho, nestes 57 anos, muitos pesquisado­res saíram de lá para assumir os Ministério­s do Planejamen­to, Fazenda e Trabalho, presidir o BNDES, o Banco do Brasil e a Petrobrás e dirigir o Tesouro e o Banco Central, em diferentes governos.

Por isso, os servidores do Ipea têm razão quando afirmam que, se o órgão hoje tem credibilid­ade, isso é fruto da competênci­a e da seriedade de seus pesquisado­res, cuja liberdade de atuação está sendo ameaçada. A exemplo do ocorrido no MEC e na UFPEL, a crise no Ipea deixa claro que o governo vem desmontand­o as ilhas de excelência da administra­ção pública. Por outro lado, o desapreço de Bolsonaro pela liberdade de pensamento e opinião não é mera retórica e tem efeitos tóxicos para o funcioname­nto da democracia.

Pesquisado­res do Ipea acusam o governo Bolsonaro de assédio institucio­nal

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