O Estado de S. Paulo

UM NEGÓCIO CHAMADO FAMÍLIA REAL

Sozinho, o Palácio de Buckingham tem mais de 400 funcionári­os e a estrutura de uma firma

- Mark Landler / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Quando a mulher do príncipe Harry, Meghan, se referiu à família real como a “Firma”, em sua dramática entrevista a Oprah Winfrey, exibida no domingo, ela evocou uma instituiçã­o que é tanto um negócio quanto uma fantasia. Agora, virou um negócio em crise, após o casal ter detonado acusações de racismo e crueldade contra seus membros.

O Palácio de Buckingham respondeu, na terça-feira, que “toda a família está consternad­a por tomar conhecimen­to total do quão desafiador­es os anos mais recentes foram para Harry e Meghan”.

As denúncias de racismo, afirmou o comunicado do palácio, são “preocupant­es” e “ainda que haja certa divergênci­a em alguns relatos, elas são levadas muito a sério e serão tratadas pela família de maneira privada”.

A história de Harry e Meghan, evidenteme­nte, é de um traumático drama pessoal – de pais e filhos, irmãos e suas mulheres brigando por causa de deslizes reais ou imaginados. Mas é também uma história de colegas de trabalho – as batalhas de uma glamourosa e independen­te forasteira que se junta a uma firma familiar tradiciona­l, rígida e, às vezes, extravagan­te.

O termo é frequentem­ente associado ao marido da rainha Elizabeth, o príncipe Philip, que popularizo­u seu uso. Mas foi cunhado antes, pelo pai da rainha, o rei George VI, que, segundo um relato, declarou uma vez: “Não somos uma família. Somos uma firma.”

Essa empresa envolve muito mais gente do que os membros da família real, abrangendo um exército de secretário­s particular­es, assessores de comunicaçã­o, damas de companhia, administra­dores de residência­s, motoristas, empregados, serventes domésticos, jardineiro­s e todas as pessoas que administra­m os palácios e as vidas dos membros da família que vivem neles.

Sozinho, o Palácio de Buckingham tem mais de 400 funcionári­os, que realizam banquetes, festas no jardim e jantares de Estado com a presença da rainha – até o aparato de relações públicas, em estilo corporativ­o, com integrante­s frequentem­ente recrutados no mundo do jornalismo ou da política.

“É muito difícil diferencia­r a família da máquina”, afirmou Penny Junor, historiado­ra da realeza que escreveu The Firm: The Troubled Life of the House of Windsor (“A firma: a atribulada vida da Casa de Windsor”). Os membros da família, ressaltou ela, usam secretário­s privados para tarefas tão pessoais como convidar seus pais ou filhos para jantar. “Não é uma família boa em se comunicar entre si”, afirmou. “Eles certamente não são bons em cuidar uns dos outros.”

Ao explicar suas razões para deixar a família, Harry e Meghan, também conhecidos como Duque e Duquesa de Sussex, citaram essa burocracia, em vez dos parentes próximos. Integrante­s da equipe de comunicaçã­o do palácio não defenderam Meghan em reportagen­s difamatóri­as, afirmaram eles. Assessores aconselhar­am Meghan a não sair para almoçar com amigos porque ela andava se expondo demais, mesmo que ela tivesse saído do Palácio de Kensington somente duas vezes em quatro meses.

Harry descreveu um tipo de Estado paralelo que permeia todos os aspectos da vida cotidiana dos membros da família e até os aprisiona, como no caso do príncipe Charles e do príncipe William, que parecem estar em paz com as restrições. “Meu pai e meu irmão são prisioneir­os”, afirmou Harry. “Eles não conseguem sair. E eu me compadeço muito deles por isso.”

O poder da burocracia do palácio tomou as atenções dias antes da entrevista, quando o inglês The Times noticiou que Meghan havia intimidado empregados de sua equipe, levando assistente­s do baixo escalão às lágrimas e fazendo com que dois assistente­s pessoais deixarem os empregos. Um porta-voz de Meghan rejeitou as acusações, qualifican­do-as como “assassinat­o de caráter”.

Mesmo depois que os irmãos separaram suas equipes, as relações com os assessores continuara­m turbulenta­s, frequentem­ente em razão da cobertura pouco lisonjeira da imprensa em relação a Meghan. Ao anunciar o plano de se afastar dos deveres reais e deixar o Reino Unido, em janeiro de 2020, o casal deu pouco tempo à sua equipe antes dispensá-la.

As relações com a imprensa estão no centro do conflito entre o casal e a família. Apesar de sua difícil história pessoal, o príncipe Charles cultivou relações melhores com os tabloides britânicos do que Harry e Meghan, que cortaram as relações e processara­m vários deles.

Harry, que culpa a agressiva cobertura da imprensa pela morte de sua mãe, Diana, em um acidente de carro em Paris, em 1997, descreveu um “contrato invisível” entre a família e os tabloides. “Se um membro da família estiver disposto a sair para jantar e dar pleno acesso a esses repórteres”, disse, “conseguirá boa publicidad­e”.

Ele afirmou que seu pai e outros membros da família morrem de medo de que os tabloides se voltem contra eles. A sobrevivên­cia da monarquia, disse ele, depende da manutenção de um certo tipo de imagem favorável entre o público britânico, que é propagada pelos tabloides. Como a Casa Branca, o palácio dá acesso a uma série de repórteres que cobrem a realeza e registram encontros e cerimônias da rainha. “Há um nível de controle pelo medo que existe há gerações”, afirmou Harry. “Ressalto, há gerações.”

É verdade, afirmam historiado­res, que a relação entre a família real e os tabloides remonta à década de 1920. Com frequência, foi uma troca mutuamente benéfica. A família real conseguiu publicidad­e para suas atividades, o que ajuda a justificar o financiame­nto público para sua segurança e outros gastos. Os tabloides obtiveram um desfile de príncipes e princesas, duques e duquesas para vender jornais.

Com a chegada de Rupert Murdoch, na década de 1970, a cobertura da família real ficou mais invasiva. O processo de Harry contra o jornal The Sun, de Murdoch, alega que o celular do príncipe foi hackeado, e Meghan ganhou recentemen­te um processo contra o tabloide The Mail on Sunday, acusado de publicar ilegalment­e uma carta pessoal que ela mandou para o pai, Thomas Markle, de quem havia se distanciad­o.

A entrevista do casal fez rolar uma proeminent­e cabeça da mídia, na terça-feira, quando Piers Morgan, apresentad­or do Good Morning Britain, noticiário da ITV, se demitiu repentinam­ente. Morgan, um crítico estridente do casal, afirmou que não acreditou em “nenhuma palavra” dita na entrevista – a declaração causou mais de 41 mil reclamaçõe­s à agência britânica de regulação das comunicaçõ­es.

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DANIEL LEAL-OLIVAS / AFP–8/6/2019 Companhia. Denúncia de racismo feita por Meghan e Harry (à direita, ao fundo) não menciona qual integrante da realeza seria o autor, mas isenta a rainha

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