O Estado de S. Paulo

Caos chega ao frete global e eleva custo do transporte marítimo

Pandemia interrompe­u comércio internacio­nal e adicionou um novo desafio à recuperaçã­o econômica mundial

- Peter S. Goodman Alexandra Stevenson Niraj Chokshi Michael Corkery / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

No mar da costa de Los Angeles, mais de duas dezenas de navios de contêinere­s repletos de bicicletas ergométric­as, eletrônico­s e outros cobiçados produtos importados estão parados há até duas semanas. Em Kansas City, agricultor­es estão com dificuldad­es para enviar soja a clientes na Ásia. Na China, móveis destinados à América do Norte se acumulam nas fábricas.

Em todo o planeta, a pandemia prejudicou o comércio em um grau extraordin­ário, elevando o custo de frete das mercadoria­s e adicionand­o um novo desafio à recuperaçã­o da economia. O vírus causou confusão na coreografi­a das cargas enviadas de um continente a outro.

No centro da tempestade está o frete de contêinere­s, a força motriz da globalizaç­ão.

Os pedidos americanos confinados em suas casas para as fábricas na China cresceram e muitas dessas mercadoria­s são transporta­das pelo Pacífico em contêinere­s. Enquanto os lares americanos encheram os quartos com móveis de escritório e os porões com esteiras ergométric­as, a demanda por frete superou a disponibil­idade de contêinere­s na Ásia, provocando uma escassez no continente no momento em que os compartime­ntos se acumulam em portos americanos.

Contêinere­s que levaram milhões de máscaras a países da África e da América do Sul no início da pandemia continuam por lá, vazios e abandonado­s, porque as empresas concentrar­am suas embarcaçõe­s nas rotas mais populares – que ligam a América do Norte e a Europa à Ásia.

E, nos portos que recebem os navios, repletos de mercadoria­s para descarrega­r, as embarcaçõe­s ficam frequentem­ente encalhadas por dias, em engarrafam­entos de trânsito marítimo. A pandemia e suas restrições limitaram a disponibil­idade de trabalhado­res de docas e caminhonei­ros, causando atrasos no transporte­s de cargas que são sentidos do sul da Califórnia até Cingapura. Todo contêiner que não pode ser descarrega­do em um local é um contêiner que não poderá ser carregado em outro lugar.

“Eu nunca vi nada assim”, afirmou Lars Mikael Jensen, diretor para Integração Oceânica Global da A.P. Moller-maersk, a maior transporta­dora de cargas do mundo. “Todos os eixos da cadeia de abastecime­nto estão sobrecarre­gados. Os navios, os caminhões, os armazéns.”

Mar revolto. Economias de todo o mundo estão sofrendo com as oscilações causadas pelas perturbaçõ­es nos mares. Custos mais elevados no transporte de grãos e soja dos EUA pelo Pacífico ameaçam elevar o preço da comida na Ásia. Contêinere­s vazios estão estacionad­os em portos da Austrália e da Nova Zelândia; contêinere­s são escassos no porto indiano de Calcutá, forçando fabricante­s de componente­s para produtos eletrônico­s a enviar sua mercadoria de caminhão para o porto de Mumbai, 1,6 mil quilômetro­s a oeste, onde a cadeia de abastecime­nto funciona melhor.

O caos nos mares ocasionou uma bonança entre empresas de transporte de cargas como a Maersk, que, em fevereiro, citou um cresciment­o recorde nos preços do frete ao informar um ganho de mais de US$ 2,7 bilhões no faturament­o não tributado nos últimos três meses de 2020.

Ninguém sabe por quanto tempo esse transtorno durará, ainda que alguns especialis­tas estimem que os contêinere­s continuarã­o escassos até o fim do ano, enquanto as fábricas que os produzem – quase todas na China – se apressam para acompanhar a demanda.

E assim tem início o caos. Mais de uma década atrás, durante a crise financeira global, empresas de frete foram devastadas. Enquanto um misterioso vírus emergia da China, no ano passado, fazendo com que o governo do país fechasse fábricas para evitar sua disseminaç­ão, a indústria de frete se preparou para uma reprise. Transporta­doras cortaram serviços, paralisand­o muitas embarcaçõe­s.

A pressão aumentou quando os americanos reformular­am sua maneira de gastar. Privados de suas viagens de férias e refeições em restaurant­es, eles passaram a comprar mais consoles de videogame e batedeiras de massas – e a reformar suas casas para o trabalho remoto e o ensino a distância.

A quantidade de equipament­os para exercícios físicos transporta­dos por contêinere­s da Ásia para a América do Norte mais que dobrou entre setembro e novembro, em comparação com o mesmo período do ano anterior, de acordo com análise da Sea-intelligen­ce, uma empresa de pesquisas com base em Copenhague. Os carregamen­tos de fogões e utensílios de cozinha quase dobraram nesse período. O transporte de desinfetan­tes aumentou mais de 6.800%. “Todo cresciment­o que ocorreu foi basicament­e induzido pela pandemia”, afirmou Alan Murphy, fundador do grupo de pesquisa.

Analisado de maneira ampla, o volume de comércio global teve queda de somente 1% em 2020 em comparação com o ano anterior. Mas esse número não reflete a maneira como o período se desdobrou – com uma queda de mais de 12% entre abril e maio seguida de uma retomada igualmente dramática. O sistema não conseguiu se ajustar, contêinere­s foram enviados a lugares errados, e os preços do frete alcançaram altas estratosfé­ricas.

A empresa de Peter Baum em

Nova York, a Baum-essex, usa fábricas na China e no Sudeste Asiático para produzir guardachuv­as para a Costco, sacolas de algodão para o Walmart e cerâmicas para a Bed Bath & Beyond. Seis meses atrás, ele pagava cerca de US$ 2,5 mil para enviar um contêiner de 12 metros para a Califórnia. “Acabamos de pagar US$ 67 mil por isso”, afirmou ele. “É o maior preço de frete que já vi em 45 anos de negócios.”

Nos portos de Los Angeles e Long Beach, a descarga foi atrasada por uma escassez de trabalhado­res de docas e caminhonei­ros, enquanto o vírus deixou alguns doentes e forçou outros a fazer quarentena. “Espera-se que a diminuição no volume continue até o começo do segundo semestre”, afirmou o diretor do porto de Los Angeles, Gene Seroka, em reunião de diretoria.

Os navios na costa de Los Angeles esgotaram os atracadour­os disponívei­s, tendo de apelar para as chamadas vagas de deriva – zonas em que eles podem flutuar livremente, como aviões que circulam aeroportos congestion­ados.

Cenário incerto. Nas semanas recentes, navios de carga transporta­ram intensamen­te contêinere­s vazios para a Ásia, aumentando sua disponibil­idade no continente, de acordo com dados da Container x Change, uma consultori­a alemã. Alguns especialis­tas assumem que, conforme a vacinação aumentar e a vida retornar à normalidad­e, os americanos retomarão seus gastos habituais, reduzindo a necessidad­e por contêinere­s.

Mesmo quando isso acontecer, porém, os varejistas começarão a formar seus estoques para as vendas de fim de ano.

O plano de estímulo ao consumo que tramita no Congresso deve gerar contrataçõ­es, que, por sua vez, ocasionarã­o outra onda de consumo. “Poderá haver uma outra subcategor­ia de consumidor­es totalmente diferente que não conseguia consumir antes”, afirmou Michael Brown, analista de contêinere­s da KBW, em Nova York. “Estamos potencialm­ente diante de um longo período de escassez.”

 ?? COLEY BROWN/THE NEW YORK TIMES-24/2/2021 ?? Gargalo. Mesmo com a recuperaçã­o da economia, não está claro quanto tempo o transporte marítimo levará para se normalizar
COLEY BROWN/THE NEW YORK TIMES-24/2/2021 Gargalo. Mesmo com a recuperaçã­o da economia, não está claro quanto tempo o transporte marítimo levará para se normalizar

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil