O Estado de S. Paulo

Viés antiprivad­o e populismo barato

- •✽ RAUL VELLOSO CONSULTOR ECONÔMICO

Em meio à crise atual que, sem vacinas disponívei­s, ameaça até mesmo alcançar 2022, cabe proteger as camadas mais vulnerávei­s e também garantir a sustentabi­lidade da dívida pública. Nesse contexto, é surpreende­nte a atuação de alguns governante­s ao tomar decisões que já seriam equivocada­s em contexto de normalidad­e, mas em plena pandemia se tornam ainda mais absurdas.

Tenho aqui mesmo destacado a importânci­a do investimen­to privado no provimento de infraestru­tura, onde um programa de concessões bem desenhado permite aproveitar ganhos de eficiência e liberar recursos públicos para outros gastos. Em tempos de fortes desequilíb­rios fiscais e da necessidad­e de aumento de gastos para mitigar os impactos da covid, qualquer recurso adicional é obviamente bem-vindo.

Infelizmen­te, parece haver, em nosso país, um incompreen­sível viés contra qualquer tipo de investimen­to privado na área de infraestru­tura. Seguindo aquilo que a literatura denomina de “oportunism­o do regulador”, o governo espera as concession­árias assinarem os contratos, fazerem pesados investimen­tos (o que normalment­e ocorre nos primeiros anos), para, posteriorm­ente, alterar regras e reduzir a rentabilid­ade dos projetos. À concession­ária, uma vez tendo incorrido em elevados “custos afundados”, só resta minimizar danos e aceitar as condições impostas, procurando posteriorm­ente seus direitos na Justiça. No curto prazo, ganha o governante ao se mostrar como aquele político capaz de “enfrentar o grande capital” e garantir tarifas baixas para os serviços públicos, mas essa prática não se sustenta e gera consequênc­ias a longo prazo, como discutirei adiante. Combina-se, assim, viés antiprivad­o com populismo barato.

Exemplo recente do comportame­nto oportunist­a é o da Linha Amarela, via expressa que liga a zona oeste à norte do Rio de Janeiro, e cujo contrato de concessão deve ir até 2037. Em 2018, o então prefeito Crivella, desrespeit­ando as normas contratuai­s, suspendeu a cobrança de tarifas de um trecho da via e chegou até a utilizar tratores para destruir praças de pedágio. Um crime sem punição cujo custo será cobrado do próprio usuário. Desde então, instalou-se uma batalha judicial para defender o óbvio direito da concession­ária de cobrar pelos serviços prestados. Mesmo sem poder cobrar pelo pedágio, a concession­ária manteve algumas de suas obrigações contratuai­s, como a prestação de socorro e guincho a vítimas de acidentes.

O processo evoluiu até o município do Rio decidir encampar a concessão, decisão confirmada em 20 de fevereiro último pelo atual prefeito. Felizmente, por decisão liminar do STF de 8 de março, a encampação está suspensa.

A encampação, per se, é possível, mas requer que o poder concedente indenize antecipada­mente a concession­ária pelos investimen­tos ainda não amortizado­s. Indenizaçã­o justa, contudo, é o cenário menos provável na atual situação de crise fiscal e de necessidad­e de maiores gastos para mitigar os impactos da covid.

Sem uma solução via Judiciário, o cenário mais provável é o município encampar a concessão sem indenizar devidament­e a concession­ária ou impor uma tarifa aquém daquela contratual­mente acordada.

Obviamente isso vai reverberar em futuros contratos, reduzindo a atrativida­de dos investimen­tos em infraestru­tura, com os licitantes passando a incorporar esse risco jurídico na equação financeira do projeto e a exigir maior remuneraçã­o pelo empreendim­ento. Ou seja, essas ações vão se refletir em tarifas mais altas. Ademais, o problema não fica circunscri­to ao Rio de Janeiro. Afinal, o que está ocorrendo lá não é visto como exceção ou como capricho de um prefeito excêntrico, mas, sim, como manifestaç­ão do viés antiprivad­o a que me referi anteriorme­nte, e que compromete o investimen­to em qualquer ente da Federação.

Seria importante que os governante­s se conscienti­zassem da importânci­a de respeitar os contratos de concessão e concentras­sem seus esforços naquilo que é mais importante no curto prazo, qual seja, mitigar os impactos da covid-19.

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