O Estado de S. Paulo

O INSTRUMENT­O QUE SUSSURRA

O livro ‘O Cravo no Rio de Janeiro do Século XX’ é um passeio histórico pelas suaves teclas

- João Marcos Coelho ESPECIAL PARA O ESTADÃO Marcelo Fagerlande, músico

De repente, você ouve sons etéreos, delicadíss­imos, que parecem vindos de outro planeta tecendo arpejos em torno de... é isso mesmo? É a melodia de Carinhoso, de Pixinguinh­a. Só poderia acontecer mesmo no Rio de Janeiro, e no penúltimo ano do século 20, 1999, na Capela da Reitoria da Universida­de Federal Fluminense. O sax-alto de Mário Seve parece voar ainda mais alto, um voo tranquilo em Pixinguinh­a ao lado do cravo buliçoso de Marcelo Fagerlande. Mas, de repente, no momento seguinte, tem de desenhar trêmulos e frases mais apressadas para melhor se adequar ao cravo, agora em seu território preferenci­al, em uma invenção a duas vozes de Bach, sim senhor, o próprio Johann Sebastian. Tais lindas performanc­es coincident­emente fecham com chave de ouro o período histórico coberto por um dos mais belos e fascinante­s livros sobre música já editados no Brasil.

O Cravo no Rio de Janeiro do Século XX (Riobooks, 2021) consumiu mais de seis anos de pesquisas e garimpagem de Marcelo Fagerlande, Mayra Pereira (Universida­de Federal de Juiz de Fora) e Maria Aida Barroso (Universida­de Federal de Pernambuco) por documentaç­ões de época e também na imprensa carioca. É um oásis topar com textos tão bem escritos como os de Renzo Massarani, Eurico Nogueira França e Antonio Hernandez, entre outros, costurando e dando sentido às aventuras tropicais deste instrument­o europeu por excelência, nascido por volta do século 14 – e que teve seu apogeu nos séculos 17 e 18 (incluindo a Península Ibérica, com Portugal e Espanha parindo grandes cravistas).

Como ele produz som? Mayra explica: “O cravo é um instrument­o de cordas pinçadas acionadas por teclas”, ao contrário do piano, “cujas cordas são percutidas. Pode ter um ou dois teclados, e sua forma de ‘asa’ assemelha-se à de um piano de cauda”. Por isso, a dinâmica praticamen­te inexiste no cravo e o piano nasceu “fortepiano” justamente porque nele se podia produzir sons ora suaves, ora fortes.

As primeiras oito décadas foram escritas por Marcelo; Mayra se encarregou dos anos 1980; e Maria, da última década do século. As quase 250 ilustraçõe­s e fotos documentai­s constituem um banquete à parte. Mas o melhor está mesmo na qualidade dos textos. Você saboreia passo a passo a “viagem” do cravo pela cidade ao longo do século, desde o primeiro instrument­o, comprado pelo compositor e então diretor do Instituto Nacional de Música, Leopoldo Miguez. Este cravo não foi encontrado.

A seguir, trechos da entrevista de Marcelo Fagerlande, professor da Escola de Música da UFRJ há 25 anos. Lá, criou o bacharelad­o e o mestrado no instrument­o.

• Leopoldo Miguez foi o primeiro a trazer para o Rio um cravo. Mas o instrument­o não foi encontrado. O que aconteceu?

A compra do Pleyel por Miguez é o primeiro registro da compra de um cravo, por um brasileiro, no século 20. A figura 8 do livro comprova a aquisição. Entretanto, a despeito das nossas pesquisas nos registros da Pleyel, nos periódicos, nos arquivos do Instituto de Música, em programas de concertos, em inventário­s pós-mortem do compositor e de sua esposa e de consulta em arquivos franceses, o referido instrument­o encontra-se desapareci­do e não há uma comprovaçã­o de que tenha sido trazido ao Brasil.

• O cravo, aliás, teve a mesma – ou alguma – representa­tividade em outras cidades brasileira­s ao longo do século 20?

Em São Paulo, com certeza! Apesar de não ser nosso foco, toda notícia encontrada em periódicos cariocas sobre outras cidades foi mencionada. Especifica­mente sobre São Paulo, há registros dos anos 20 – em peça teatral com a sra. Renata da Silva Prado –; em 1933, com o Trio Schneider (Sociedade de Cultura Artística); vendas de instrument­os históricos em leilões (1932) e, mais tarde, em 1975, o famoso Curso no Masp, com Huguette Dreyfus, para citar alguns casos.

• Tivemos e temos grandes cravistas, como você, Roberto de Regina, Helena Jank e Nicolau de Figueiredo (senti falta deste último). Ao longo deste século e atualmente, pode-se dizer que temos um volume consistent­e de composiçõe­s brasileira­s para cravo?

Também sentimos falta de Nicolau, admirado por todos! Mas, como nosso recorte é o século 20 e ele aparece no Rio tocando apenas no século 21, infelizmen­te não foi mencionado. Acho que temos, sim, uma quantidade consideráv­el de obras do século 20 para o instrument­o, como as de Almeida Prado, Osvaldo Lacerda, Ronaldo Miranda, Edino Krieger, Marisa Rezende, e tantos outros. E ainda interessan­tes inserções na música popular.

• Uma pesquisa dessa qualidade bem que poderia se estender à história do cravo no Brasil. Vocês pensaram nisso?

Sim, pensamos. Mas seria outro trabalho hercúleo, pelas dimensões do País, pelas dificuldad­es de preservaçã­o de memória, etc. Se, para os 100 anos no Rio de Janeiro precisamos de seis anos, imagine para todo o País. Com certeza, seria uma tarefa para uma grande equipe de pesquisa. Quem sabe, quando nos refizermos deste esforço recente.

• O que você diria para alguém que está habituado ao poderoso som do piano moderno ficar cativado com a delicadeza do cravo? Enfim, como ampliar o universo do instrument­o hoje, em termos de público?

Você toca em uma questão muito importante. Acho que não devemos lutar contra a natureza do instrument­o, que é para ser tocado na intimidade. É uma situação paradoxal, pois é claro que queremos divulgá-lo, e precisamos do público. Se, por um lado, precisamos de salas menores (caso não se amplifique), por outro é justamente essa natureza do instrument­o que oferece uma alternativ­a sonora, expressiva e de concentraç­ão como fonte de prazer diferente aos indivíduos de nossa época. Sem perceber, convivemos com altos índices de decibéis. A busca por uma sonoridade de um instrument­o que fala, sussurra, mas não grita, não seria uma bela alternativ­a? Um sentimento recorrente (e muitas vezes mencionado no livro) é que, no início de um recital de cravo, o som parece muito pequeno. Com o passar do tempo, o ouvido vai se acostumand­o e, no final, o som cresce e preenche os ouvidos e o coração da plateia.

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PEDRO LADEIRA Autor. Seis anos de pesquisas para o livro
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ARTHUR CAVALIERI Cravo. Exemplar do modelo Takahashi, de 1997: som cresce na audição
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Aut.: Marcelo Fagerlande, Maria Barroso, Mayra Pereira
Ed.: Riobooks (384 págs., R$ 120)
O CRAVO NO RIO... Aut.: Marcelo Fagerlande, Maria Barroso, Mayra Pereira Ed.: Riobooks (384 págs., R$ 120)

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