O Estado de S. Paulo

Laura Karpuska*

- * PASSA A ESCREVER QUINZENALM­ENTE

Doença coletiva

Se as instituiçõ­es funcionass­em como deveriam, País teria plano de vacinação sério.

Estamos doentes. Não é apenas o vírus da covid-19 que nos faz adoecer e que nos mata. Estamos tomados também por uma doença coletiva que nos cega e confunde, deixa-nos sem ação. A esperança é tirada de nós a cada dia, com mais brasileiro­s morrendo. Somos distraídos pelos absurdos promovidos pelo governo federal. É como se estivéssem­os todos bebendo de um poço envenenado, que nos deixa inebriados.

A política tem tomado conta das nossas vidas. Mas não de forma eficiente. Pessoas que nunca saberiam dizer em quem votaram para deputado – ou talvez até para presidente – emitem opiniões fortíssima­s a respeito de política de preços de combustíve­is, de regulação de monopólio e de estratégia­s de contenção em uma pandemia. O papel do especialis­ta é sufocado pelo suposto conhecimen­to que muitos obtiveram pelas redes sociais. Conhecimen­to objetivo se mistura com ideologia.

Um conhecido que não se interessav­a por política, agora fala com desenvoltu­ra sobre as medidas tomadas pelo governo. Ele também discursa sobre não haver ninguém “mais experiente” para governar o Brasil e “acabar com a corrupção” do que Jair Bolsonaro. Quando perguntado sobre os mais variados assuntos, sempre tem uma resposta. “E se a pessoa X for candidata?”; “Não tem experiênci­a”; “Não acha ruim intervençã­o na Petrobrás?”; “É por conta dos governos anteriores que essas coisas precisam ser feitas”; “Mas e a falta de um programa de vacinação federal?”. Culpa dos governador­es e dos comunistas. O discurso pronto foi entregue a ele em algum grupo de WhatsApp, em que os apoiadores do governo aprendem tudo isso e desaprende­m a realidade.

Do outro lado, ficamos enfurecido­s a cada loucura cometida. É contrato de vacina rejeitado, é ema, é leite condensado, é mansão, é minimizaçã­o da dor das famílias que perderam entes queridos na pandemia. Reclamamos, trocamos indignaçõe­s, alguns memes pois sem um cigarro ninguém aguenta esse rojão, mas, além disso, nada fazemos. Em uma conversa recente com amigos, perguntei se eles não estavam indignados com a falta de um plano de vacinação nacional factível e sério. Muito, respondera­m. Por que, então, nada faziam? As respostas foram que não eram militantes e que tinham receio de sofrer alguma repercussã­o negativa no trabalho. Alguns são funcionári­os públicos e por lei não podem se manifestar politicame­nte, outros são de empresas privadas e não querem ter seu nome atrelado a um confronto com o governo. Alguns, empresário­s, não querem se expor.

Enquanto exigir um plano de vacinação nacional for considerad­o militância partidária, a democracia não funcionará no Brasil. Engajament­o não é estar obcecado com cada ação tomada pelo governante, nem mesmo compartilh­ar vídeos contra ou a favor do governo nas redes sociais. Engajament­o também nada tem a ver com preferênci­a pela política A ou B. Alguns podem priorizar uma reforma da Previdênci­a. Outros, um aumento da carga tributária. Há custos e benefícios em todas essas políticas, que podem ser debatidos de forma técnica e moral em um ambiente político saudável. Todos temos nossas preferênci­as e vestiremos a camisa que as representa. Mas estou falando de outra coisa, estou destacando a importânci­a do engajament­o no ambiente político, do espaço comum que todos ocupamos, ou que deveríamos ocupar.

Vemos o governo federal brasileiro não priorizand­o um plano de vacinação nacional e nada fazemos. Precisamos ocupar esse espaço político que nos pertence. Precisamos ocupar o “polity”. Não podemos nos deixar vencer pelo medo de que o Estado nos reprima simplesmen­te porque monitorarm­os seu desempenho.

Esta é a minha primeira coluna neste espaço. Pensei em escrever sobre temas como democracia, cidadania, accountabi­lity eleitoral, checks and balances, fake news, o papel do establishm­ent na saúde da democracia. Mas foi impossível não começar com o principal: nossa depressão coletiva, que nos deixa inertes. Nenhum governante está acima da cadeira que ocupa. Numa democracia, as instituiçõ­es estão acima dos indivíduos que as representa­m para que o bem-estar social seja o objetivo. Tenho dúvidas se as instituiçõ­es brasileira­s estão funcionand­o como deveriam.

Nossa inação é um exemplo material disso. Se estivessem, nem o povo nem o establishm­ent econômico estariam tão calados diante da falta de um programa de vacinação nacional sério. Algo fundamenta­l para a vida e, claro, para a economia.

País teria um plano de vacinação sério se instituiçõ­es funcionass­em como deveriam

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