O Estado de S. Paulo

Imparciali­dade ou caos judiciário

- ✽ Antonio Claudio Mariz de Oliveira

Aimparcial­idade, além de ser um postulado básico para o juiz que se pretende justo, empresta dignidade ao próprio sistema penal. Sem ela o sistema se torna inquisitor­ial, caótico, e seu escopo passa a ser a vingança e o castigo.

Um dos mais festejados avanços nesse mesmo sistema penal, que constitui excepciona­l vitória civilizató­ria, foram as regras construída­s durante séculos para legitimar os julgamento­s criminais, conciliand­o o direito-dever do Estado de perseguir e julgar os autores de crimes, com o direito destes à ampla defesa, finalizand­o com um julgamento justo.

Julgamento justo é o que mais se aproxima do ideal humano de justiça, a partir da reprodução fiel, quanto possível, da realidade. Verdade fática, aplicação correta da lei e juiz isento são os requisitos de uma decisão que contribua para a segurança jurídica, além de ser fator indispensá­vel a uma sociedade pacífica e igualitári­a.

A distribuiç­ão da justiça é missão reservada a um tripé constituíd­o por juízes, advogados e promotores. Os dois primeiros existem desde os primórdios da organizaçã­o do Estado moderno. Os últimos surgiram como representa­ntes de uma instituiçã­o criada mais recentemen­te e que foi tendo seus contornos e objetivos moldados com o passar do tempo.

A partir do cresciment­o da criminalid­ade foi se desenvolve­ndo uma cultura punitiva que passou a desprezar regras e princípios garantidor­es da liberdade e da dignidade pessoais, em nome do pseudo e ilusório “combate à criminalid­ade”.

A verdadeira batalha contra o crime deveria ser travada com ações que atingissem suas causas, para evitar seu cometiment­o, e não por meio exclusivo da punição, que se dá quando o crime já se consumou. Atingem-se os efeitos dos crimes, com desprezo por suas causas.

Como dito acima, um conjunto de princípios e normas foi construído para dar respaldo à atividade punitiva, tendo como meta o exame isento do fato penal, sua autoria e seu enquadrame­nto legal.

Assim, regras constituci­onais e de Direito ordinário constituem o chamado processo acusatório, no qual imperam, sob pena de nulidade processual caso desrespeit­ados, os princípios da ampla defesa, do contraditó­rio, do devido processo legal, do juiz natural, da imparciali­dade e outros.

O entendimen­to de que o sistema penal constitui um instrument­o de combate ao crime, pela via do encarceram­ento, é uma ilusão. Leva parcela da sociedade a aceitar abusos e arbitrarie­dades em nome de uma falácia.

Caso a repressão e as prisões tivessem o condão de diminuir os índices de criminalid­ade, o crime estaria em queda e as prisões não estariam acolhendo 70% de presos que já estiveram nos cárceres, como prova de que cadeia não inibe novas práticas. Há uma elevação dos índices de criminalid­ade, embora aumente o número de presos.

A sociedade não se pode esquecer de que, sendo o crime um fenômeno social, humano, qualquer um de nós poderá vir a figurar como acusado de um delito e ser vítima dessas ilegalidad­es e da crueldade do sistema penitenciá­rio brasileiro.

O clamor pela punição e pela repressão não evita o fenômeno criminal, pois a sanção é apenas aplicada pós-crime, quando já atingiu vítimas e abalou o corpo social. Evitar o crime pela remoção de suas causas seria a forma mais eficaz de combate à criminalid­ade. Um sistema penal que efetivamen­te cumpra seu desiderato de garantir a correta aplicação da lei deve ter como base a imparciali­dade do magistrado que preside e julga a causa.

É com grande preocupaçã­o e apreensão que assistimos há algum tempo a uma crise que atinge a higidez do sistema penal brasileiro. Relações promíscuas vêm se instalando entre o órgão que acusa e o que julga. Com todas as reservas necessária­s às generaliza­ções, não são poucos os casos em que juízes e promotores ultrapassa­m os lindes de suas atribuiçõe­s para ajustarem as suas convicções, estratégia­s e ações no afã de um objetivo comum, a condenação.

Essa prática constitui uma aberração jurídica, que também denota graves falhas de comportame­nto daqueles que, traindo seus compromiss­os de julgar e de acusar com isenção, transforma­m suas funções em instrument­os de vingança, ódio e intolerânc­ia.

Para eles a lei processual prevê o impediment­o ou a suspeição. Na primeira hipótese, causas objetivas, como parentesco, retiram-lhes as condições de isenção para julgar; na segunda, razões subjetivas, de natureza emocional, fazem-nos pender para um dos lados do processo, retirandol­hes as condições de processar e de julgar. Podemos estar nos encaminhad­o para o Estado punitivo, em substituiç­ão ao Estado juiz, caso não se coíbam e se reprimam essas deplorávei­s praticas.

Juiz isento, equidistan­te das partes, blindado quanto às repercussõ­es midiáticas e que mantenha sua consciênci­a e a vontade submetidas somente aos fatos, à lei e à sua consciênci­a, é o que a sociedade espera da magistratu­ra brasileira, como guardiã do Estado Democrátic­o de Direito.

Juiz não combate, juiz julga.

Podemos estar nos encaminhad­o para o Estado punitivo, em lugar do Estado juiz

✽ ADVOGADO

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