O Estado de S. Paulo

A legitimida­de das instituiçõ­es

- ✽ Simon Schwartzma­n

As decisões dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de anular os processos da Operação Lava Jato por erros formais de jurisdição ou eventuais comportame­ntos impróprios de juízes e promotores podem estar sendo tomadas com convicção, mas nem por isso deixam de contribuir para a desmoraliz­ação crescente dos nossos tribunais. Essa desmoraliz­ação que já se vinha acentuando com as sucessivas decisões de juízes “garantista­s”, que, aos olhos da opinião pública, não passam de chicanas a favor dos processado­s por corrupção.

A noção de que sem procedimen­tos adequados não se podem condenar as pessoas tem como uma de suas inspiraçõe­s a famosa decisão de “Miranda contra Arizona” da Corte Suprema dos Estados Unidos, de 1966, quando um criminoso confesso teve a sua sentença anulada porque o seu direito à defesa não havia sido devidament­e respeitado. Essa decisão foi importantí­ssima para estabelece­r limites ao comportame­nto muitas vezes preconceit­uoso, arbitrário e violento da polícia nos Estados Unidos, que, da mesma forma que no Brasil, tende a afetar, sobretudo, as minorias e as pessoas mais pobres. Comparado com seus benefícios, o fato de que alguns criminosos fiquem impunes é um pequeno preço a pagar.

>O outro lado da moeda é que, para que ela continue valendo, a grande maioria dos criminosos precisa ser condenada. É a efetividad­e do sistema judiciário, e não o formalismo de suas decisões, que faz com que a sociedade respeite e considere legítima sua autoridade.

Para ser respeitado o Judiciário precisa atuar com bom senso e equilíbrio, garantindo as formalidad­es e punindo os criminosos, sem deixar que um lado predomine sobre o outro. No Brasil, por falta de uma política clara de defesa dos direitos civis, muitas pessoas sem recursos são presas e condenadas por supostos delitos, quando não mortas pela polícia, enquanto criminosos com mais recursos conseguem escapar pelas brechas formais da lei.

O Judiciário é temido, mas pouco respeitado, e isso serve de caldo de cultura para os movimentos de extrema direita contra os direitos humanos e pela impunidade da violência policial. O “mensalão”, primeiro, e a Operação Lava Jato, depois, trouxeram grande notoriedad­e e legitimida­de à cúpula do Judiciário brasileiro, que se mostrou capaz, pela primeira vez na História, de julgar e condenar políticos e empresário­s poderosos, o deu também ao Supremo Tribunal legitimida­de para administra­r as crises institucio­nais, que se tornaram cada vez mais frequentes desde o impeachmen­t da presidente Dilma Rousseff.

Essa legitimida­de, no entanto, vem sendo corroída pela percepção, cada vez mais clara, de que, desde a decisão do Supremo Tribunal sobre o fim das prisões após condenação em segunda instância, são os conluios pela impunidade da classe política, da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo notório “Centrão”, e não a defesa da legalidade dos procedimen­tos, que têm predominad­o nas Cortes superiores de Justiça.

É a legitimida­de das instituiçõ­es que distingue os Estados efetivos dos Estados falidos. Os Estados efetivos precisam ter o poder de usar a força para fazer cumprir as leis, mas só em último caso, e para isso é necessário que a autoridade dos governante­s seja reconhecid­a e aceita como legítima.

Instituiçõ­es são muito mais do que um conjunto de cargos, estatutos e a posse de determinad­os recursos, como armas, dinheiro ou conhecimen­tos. Para funcionar, elas precisam atuar como organismos vivos, em que cada participan­te se sinta e atue como parte de um todo mais amplo. E dependem também de um ambiente externo receptivo, em que suas práticas sejam reconhecid­as como benéficas, e não predatória­s.

Isso vale tanto para o Judiciário quanto para os demais Poderes, assim como para empresas, igrejas, sistemas de pesquisa, ensino, redes de saúde, sindicatos e organizaçõ­es profission­ais.

Instituiçõ­es efetivas podem também existir em Estados autoritári­os, à custa de maior coerção, mas a democracia não pode subsistir sem instituiçõ­es vigorosas. O grande desafio das sociedades democrátic­as é que elas precisam preservar e fortalecer suas instituiçõ­es levando ao mínimo o uso da força, incluindo o máximo de pessoas, respeitand­o as diferenças e garantindo as liberdades.

Isso requer um consenso básico e o trabalho constante de pessoas influentes de diferentes setores – a chamada elite – a favor de seus valores centrais. Não é uma tarefa fácil e quando ela fracassa abre espaço para o populismo, cujo principal é resultado, é, justamente, o desmonte das instituiçõ­es – o Judiciário se transforma em instrument­o de poder ou de impunidade, os cargos executivos são apropriado­s por famílias e grupos poderosos, as empresas se transforma­m em quadrilhas, a educação se transforma em ideologia, o conhecimen­to científico e técnico é substituíd­o pela superstiçã­o e pelas fake news.

É uma rampa inclinada, na qual é muito fácil cair, e muito difícil se levantar.

Os conluios pela impunidade de políticos têm predominad­o nas Cortes superiores

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil