O Estado de S. Paulo

Equilíbrio da justiça penal

É necessário respeitar a separação das funções investigat­iva, acusatória e judicante.

-

As discussões sobre a imparciali­dade do juiz Sérgio Moro durante a Operação Lava Jato trazem à tona um tema fundamenta­l para um sistema de justiça equilibrad­o: a necessária separação das funções investigat­iva, acusatória e judicante. Apesar de sua importânci­a para sentenças penais justas, observa-se uma enorme resistênci­a em diferencia­r, como manda o bom Direito, os papéis da polícia, do Ministério Público e do Judiciário. Tal é a resistênci­a que, não raro, se passa por cima da própria lei na tentativa de dar ares de normalidad­e a práticas que afrontam liberdades e garantias individuai­s.

Em 2019, o Congresso aprovou a figura do juiz de garantias. Trata-se de magistrado que atua exclusivam­ente na fase de investigaç­ão criminal, sendo responsáve­l pelo controle da legalidade dos atos praticados e pelo respeito aos direitos dos investigad­os. Depois, com a apresentaç­ão da denúncia, o caso é destinado a outro juiz para julgamento.

Adotado em vários países europeus, o sistema dos dois juízes tem como objetivo assegurar maior isenção da magistratu­ra criminal. O juiz que cuida da investigaç­ão não é o mesmo que dará depois a sentença sobre o caso.

Pois bem, o Congresso aprovou a medida, mas ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) não gostaram da inovação e, estranhame­nte, vêm retardando sua aplicação. Num primeiro momento, o ministro Dias Toffoli adiou por seis meses a implantaçã­o do juiz de garantias.

Depois, aproveitan­do um plantão, o ministro Luiz Fux concedeu liminar suspendend­o a medida por tempo indetermin­ado. No fim do ano passado, houve pedido de habeas corpus coletivo para que o mérito do caso fosse julgado, mas o ministro Alexandre de Moraes denegou a ordem. Em estranha inversão de papéis, membros do STF querem legislar sobre processo penal.

Outro assunto em que o Supremo prejudicou o equilíbrio do sistema de justiça refere-se à confusão entre as funções investigat­iva e acusatória. Em 2015, por um placar de 7 a 4, o STF entendeu que o Ministério Público pode realizar investigaç­ões criminais.

A função de investigar na seara penal é reservada à polícia judiciária. Tanto é assim que a Constituiç­ão de 1988, mesmo conferindo amplos poderes ao Ministério Público, não lhe atribuiu essa específica competênci­a. O Supremo, no entanto, autorizou a investigaç­ão feita pelo Ministério Público.

A mistura entre os papéis investigat­ivo e acusatório causa sérios danos ao equilíbrio processual e, consequent­emente, gera dificuldad­es para se obter um julgamento justo. O objetivo central da investigaç­ão é elucidar os fatos, e não ser mero suporte à acusação. Por exemplo, investigaç­ões bem feitas não apenas auxiliam o acusador, como podem trazer elementos para a defesa dos réus.

Quando se permite que o Ministério Público, cuja função dentro do sistema de justiça penal é acusar, realize investigaç­ões, tem-se um grave problema. Aquela fase que deveria ser a mais isenta possível, sem nenhum viés acusatório – afinal, trata-se de descobrir o verdadeiro culpado, e não simplesmen­te reunir elementos para incriminar aquele que, num primeiro momento, parecia ser o culpado –, fica deformada. Ou seja, há uma perda da isenção em relação a um elemento do processo penal que deveria ser completame­nte neutro: os fatos investigad­os.

A autorizaçã­o para que o Ministério Público investigue não afeta negativame­nte apenas a tarefa de acusação, que, em vez de se basear em fatos apurados isentament­e, passa a estar informada por dados cuja obtenção foi enviesada. Ela prejudica também a neutralida­de da polícia, que vê surgir uma espécie de concorrent­e a trabalhar sem o devido distanciam­ento. Com isso, a polícia fica exposta a supostas pressões de eficiência que em nada dizem respeito à eficiência. Em vez de elucidar o que de fato ocorreu, ela se vê instada a encontrar dados que corroboram a versão do Ministério Público.

O desequilíb­rio do sistema de justiça abre a porta para erros processuai­s e muitas condenaçõe­s injustas, que, além de punir pessoas inocentes, deixam impunes os verdadeiro­s culpados. Há muito o que avançar, também no Supremo.

É necessário respeitar a separação das funções investigat­iva, acusatória e judicante

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil