O Estado de S. Paulo

O SUS visto das urnas

- ✽ Antonio Carlos do Nascimento ✽ DOUTOR EM ENDOCRINOL­OGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, É MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOL­OGIA E METABOLOGI­A (SBEM)

Aparticipa­ção popular na condução pandêmica brasileira é bastante repreensív­el, porém ocorre perante um jogo de culpas que vai muito além de nossos afrontamen­tos ideológico­s; estes ampliam, mas não assumem a tragédia dos números. Aglomeramo-nos, ou não usamos máscaras, por convicções próprias, pelo desdém à dor alheia, algo da essência humana visto globalment­e em robustos porcentuai­s, decisões que se alinham a extremismo­s, sem que deles derivem majoritari­amente.

Em nosso brasileiro senso de inferiorid­ade vivemos idolatrand­o as versões administra­tivas de Reino Unido, Estados Unidos e grande parte dos países europeus, mas quando observamos os gráficos comparativ­os vemos essas nações com folga à nossa frente na quantidade mortes por covid-19 em relação às suas populações. Por milhão de habitantes já morreram (dados do dia 8 de março) 1.257 brasileiro­s, porém, em mesma avaliação, são 1.938 belgas, 1.859 britânicos, 1.610 portuguese­s, 1.592 americanos e 1.304 franceses, para citar exemplos frequentes de nossas reverência­s. O Sistema Único de Saúde (SUS) é a justificat­iva para o paradoxo dos números brasileiro­s menos desastroso­s que os pares confrontad­os, apesar de nossas condutas pessoais irresponsá­veis e dos descompass­os governamen­tais em suas derivações, tal qual o distante lugar que ocupamos na fila internacio­nal das vacinas.

A engenhosa estrutura do SUS vem driblando orçamentos deficitári­os e embates partidário­s, enquanto instaura ações tuteladas pelo conhecimen­to científico, e não por menos é referência mundial em grandiosos projetos, no que inegavelme­nte se destaca pelos programas de vacinação. Contudo o SUS que salva o País, mesmo neste ambiente de total distonia planetária, agoniza há muito tempo em descuidos sequenciai­s.

Ainda que a Lei Complement­ar n.º 141, de 13 de janeiro de 2012, tenha definido as frações dos orçamentos de municípios e Estados que financiari­am a instituiçã­o, ficaram mantidos os mesmos insuficien­tes investimen­tos de seu maior patrocinad­or, o governo federal, com o mesmo valor anual que vinha sendo empenhado, corrigido apenas por índice atrelado à variação do produto interno bruto.

O contido investimen­to federal no SUS ganhou austeridad­e com a Emenda Constituci­onal n.º 95, de 15 de dezembro de 2016, mudança do texto constituci­onal que fixou as despesas federais em tetos, os quais serão corrigidos anualmente apenas pela inflação acumulada. O engessamen­to teve aprovação para perdurar até 2036 e os volumosos estragos que segurament­e ocorrerão na saúde e na educação nacionais não foram considerad­os, e se foram perderam em importânci­a nas mesas de negociação.

É possível, e não infrequent­e, que uma equipe econômica articule suas estratégia­s regida pela temperatur­a política, gerando prejuízos numéricos reais, e ainda assim a satisfação popular e/ou outras resultante­s compensem a atitude. Com sorte a manobra pode deixar margem para ajeites posteriore­s e balanços equilibrad­os, ou não, é o jogo.

Em saúde pública, esses ensaios não deveriam ser permitidos, ou melhor, em rotas tão óbvias, qualquer desvio é muito bem flagrado pelas estatístic­as epidemioló­gicas, pois o caminho torto mata ou mutila número incontável de seres humanos, onerando famílias sentimenta­lmente por perdas evitáveis e custando muito caro para o Estado quando o resultado é a incapacita­ção perene para o trabalho.

A emergência sanitária não criou o claustrofó­bico ambiente financeiro corrente, mas restringiu substancia­lmente os movimentos em cada pasta administra­tiva, e esse contexto deflagrou articulaçõ­es pouco proveitosa­s para saúde e educação.

A votação do Orçamento da União, prevista para o fim deste mês de março, traz nas sinalizaçõ­es de seus atores a possível e lamentável redução de R$ 30 bilhões no financiame­nto do SUS para 2021. Para compor neste futuro sombrio do SUS, há ainda o ensaio encampado pelo novo presidente da Câmara dos Deputados pretendend­o desvincula­r completame­nte o Orçamento federal, mantendo o teto global de gastos, mas retirando as exigências constituci­onais, tais quais as obrigatori­edades de gastos mínimos com saúde e educação.

Com todo quinhão orçamentár­io nas mãos do Congresso, as chances para comprometi­mento consideráv­el no gerenciame­nto da saúde pública e educação são maiúsculas. A explicação para esse recorrente desprezo é o espaço de tempo tomado até encontrarm­os os prejuízos. Nossa avassalado­ra massa de analfabeto­s funcionais e os imensos custos previdenci­ários por incapacida­de para o trabalho não resultaram das medidas adotadas neste ou no governo imediatame­nte anterior, têm lastro histórico amparado no comportame­nto brasileiro de se importar apenas com os problemas imediatos.

Mas se as atrocidade­s virais dimensiona­m a grandeza do SUS, também escancaram em tempo real os comportame­ntos viscerais de nossos comandante­s, especialme­nte diante dos extremos da escassez de recursos. Estamos diante de imenso e inusitado workshop de gestão pública, que nos ensinará a procurar nas urnas o país em que queremos viver.

Estamos diante de um imenso ‘workshop’ de gestão pública, rumo ao País que queremos

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