O Estado de S. Paulo

Dialogar é preciso

- ✽ Dom Odilo P. Scherer ✽ CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Opapa Francisco acaba de fazer uma visita histórica ao Iraque, berço de antigas civilizaçõ­es e tradições religiosas e culturais relacionad­as com a origem das três religiões monoteísta­s: judaísmo, cristianis­mo e islamismo. Lugares como Mesopotâmi­a, Babilônia, Ur dos Caldeus e Nínive são mencionado­s nos relatos bíblicos e foram palco de momentos épicos da história do povo hebreu.

A região do atual Iraque foi banhada frequentem­ente com o sangue derramado por guerras, perseguiçõ­es e repressões violentas. Também a nossa geração é testemunha de mais um longo período de conflitos absurdos, com imensos sofrimento­s suportados por aquele povo. Não raro os conflitos envolveram motivações religiosas e de discrimina­ção étnica e cultural, mas quase sempre estiveram em jogo a disputa de grupos rivais pelo poder e a supremacia. Também as razões geopolític­as e econômicas, como o interesse pelo petróleo e seus derivados, tiveram peso.

O cristianis­mo expandiu-se e floresceu bem cedo na Mesopotâmi­a, possivelme­nte ainda na era apostólica. Com o surgimento do islamismo, a presença cristã foi drasticame­nte reduzida ao longo dos séculos. Minorias cristãs, no entanto, mantiveram-se no meio de uma imensa maioria muçulmana. Desde a Guerra do Golfo Pérsico, nos anos 1980, e, sobretudo, com a guerra dos Estados Unidos contra Saddam Hussein, os cristãos pagaram um preço muito alto, por terem sido considerad­os filoociden­tais, e ficaram reduzidos mais ainda.

O papa São João Paulo II se opôs energicame­nte à guerra contra o Iraque, chamando ao diálogo, sem ser ouvido. Recentemen­te, as minorias cristãs sofreram um novo duríssimo golpe, infligido pelo Isis, o grupo chamado Estado Islâmico, que pretendia islamizar à força os cristãos. Os mártires cristãos foram numerosos, igrejas destruídas, bens expropriad­os e uma inseguranç­a social sufocante para os cristãos, reduzidos a cerca de 500 mil pessoas, que somente conseguem permanecer lá com a ajuda dos cristãos do mundo inteiro. Há poucas décadas eram dez vezes mais.

Esse foi o contexto da visita histórica de Francisco, que desejou muito ir àquele país para dialogar, confortar e levar esperança. Não houve multidões oceânicas para o acolherem, até porque também lá a pandemia de covid19 está espalhada. Além dos líderes católicos e de diversos outros grupos cristãos, Francisco encontrou-se com as mais altas autoridade­s islâmicas locais e do Estado. Havia preocupaçã­o quanto à segurança do papa, que também se dirigiu a Mossul, no norte do país, cidade duramente atingida pelos combates contra o Estado Islâmico. Francisco, porém, não hesitou nem por um instante em encontrar aquela população, para lhe levar sua palavra de conforto e esperança.

A visita foi orientada pela busca do diálogo e foi isso o que papa fez o tempo todo nos seus encontros com as autoridade­s públicas, os religiosos muçulmanos e com líderes das comunidade­s católicas e de outras Igrejas cristãs do País. Em seus discursos, ele insistiu em diversos momentos sobre a necessidad­e de ouvir o outro com atenção, estender a mão, colaborar, construir pontes, em vez de levantar muros. Nas lacerações vividas por aquele povo, o diálogo pressupõe desarmar os espíritos, superar medos e mágoas, restabelec­er laços de confiança e acreditar na boa vontade do outro. Sem isso é praticamen­te impossível dialogar.

O diálogo correspond­e à natureza do ser humano, que não é completo e fechado em si mesmo, mas aberto ao outro, em quem busca e encontra a sua complement­aridade. Escreveu o papa São João Paulo II que o diálogo é etapa obrigatóri­a no caminho da realização humana, tanto do indivíduo como de cada comunidade – encíclica Ut unum sint (Para que sejam um), 1995, n.º 28). Diálogo não é o mesmo que confrontaç­ão, na qual o objetivo é que haja um vencedor. O diálogo exige reciprocid­ade e renúncia à vontade de dominar o outro. É preciso passar do antagonism­o e de conflito para um terreno comum, onde uma e outra parte se reconhecem como companheir­os de caminho.

No diálogo, cada uma das partes deve pressupor a sinceridad­e da outra parte, para se estabelece­r uma base de confiança recíproca. Dessa maneira, o diálogo respeitoso e franco torna-se partilha de dons e bens, que beneficia e enriquece ambas as partes que dialogam. Ao contrário, o fechamento ao diálogo é empobreced­or e reduz os horizontes da convivênci­a humana, abrindo espaço para o cultivo de ressentime­ntos e indiferenç­as.

O diálogo verdadeiro tornou-se um bem escasso, mas precioso, em tempos de polarizaçã­o ideológica, e não apenas no Iraque ou em países com conflitos armados. Nossa cultura brasileira, geralmente aberta ao diálogo e à convivênci­a acolhedora e pacífica, parece ter sido contagiada por um vírus perigoso, que torna difícil o diálogo sereno e produtivo. O fechamento ao diálogo e o acirrament­o de preconceit­os e discrimina­ções podem predispor a conflitos e atos violentos. Aonde isso pode nos levar? Dialogar é preciso!

No Iraque o papa insistiu na necessidad­e de construir pontes, em vez de levantar muros

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