O Estado de S. Paulo

Terra devastada

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Em poucas áreas a militância truculenta calcada em ideias indigentes, caracterís­tica da ideologia bolsonaris­ta, é tão virulenta quanto na cultura. Jair Bolsonaro subiu ao poder prometendo uma “guerra cultural” para restaurar os valores do povo brasileiro. Se a ideia de um governo atuando como polícia da cultura é já em si questionáv­el, os resultados mostram que, da guerra, ele entregou só a pior parte: a destruição.

Logo no primeiro dia do governo, o Ministério da Cultura foi extinto e transforma­do em Secretaria. Inicialmen­te lotada no Ministério da Cidadania, ela foi depois embutida no Ministério do Turismo, revelando uma concepção peculiar de cultura, como mero ornamento “para inglês ver”. O primeiro secretário, Henrique Pires, renunciou reclamando de censura. Seu sucessor, Ricardo Braga – oriundo do mercado financeiro –, foi exonerado em dois meses. Depois veio Roberto Alvim, derrubado por plagiar Joseph Goebbels; a atriz Regina Duarte; e, finalmente, o ator sem qualquer experiênci­a em gestão cultural Mário Frias.

A cada troca ficava mais evidente que o critério era a fidelidade à ideologia bolsonaris­ta. Esta ciranda de secretário­s incompeten­tes, inconsiste­ntes ou intolerant­es revela o que é a cultura para Bolsonaro: um estorvo – uma atividade, na melhor das hipóteses, de criaturas exóticas e, na pior, de esquerdist­as subversivo­s.

O ex-presidente da Funarte Dante Mantovani defendeu o terraplani­smo e acusou o rock de promover o satanismo e o aborto. O chanceler Ernesto Araújo, eminente ideólogo do governo, já fabricou a filiação de um dos maiores poetas brasileiro­s, João Cabral de Melo Neto, ao comunismo. O presidente atuou diretament­e para reduzir os incentivos à cultura de entidades como a Caixa, Banco do Brasil e Correios. Mas nada demonstra mais o seu obscuranti­smo que o sucateamen­to da Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), o principal mecanismo federal de fomento à cultura.

No fim de 2020, 400 projetos perderam a oportunida­de de receber R$ 500 milhões em renúncias fiscais prometidas por empresas, porque a Secretaria de Fomento, liderada pelo capitão da PM André Porciuncul­a, não se organizou para autorizar as transferên­cias no prazo. Porciuncul­a alegou dificuldad­es para auditar os projetos. Mas eram projetos já aprovados pela comissão responsáve­l, que só careciam da publicação no Diário Oficial.

Produtores experiente­s, como o grupo de teatro Cia. BR116 ou o Instituto Vladimir Herzog, tiveram projetos arquivados na fase de admissibil­idade – que avalia a documentaç­ão e o orçamento –, levantando suspeitas de motivações ideológica­s. Produtores ouvidos pelo Estado relatam dificuldad­es em simplesmen­te se comunicar com a Secretaria.

Agora, em mais uma tentativa de chantagear os governos subnaciona­is a relaxar as medidas de combate ao vírus, conforme os desígnios do presidente, a Secretaria suspendeu a análise de projetos em localidade­s onde vigoram restrições de circulação, alegando que poderiam causar aglomeraçõ­es. Mas a análise toma meses – mais ainda com os quadros incompeten­tes da atual gestão. Só então os produtores são autorizado­s a captar recursos e depois produzir seus espetáculo­s. Ou seja, a análise não tem relação com a realização de espetáculo­s agora, e sua suspensão só penaliza arbitraria­mente os produtores, adiando as possibilid­ades de recuperaçã­o do setor quando as restrições forem devidament­e aliviadas. De resto, muitos projetos que hoje não podem ser realizados por causa das restrições solicitam modificaçõ­es para adaptálos a elas – como transmissõ­es online ao invés de presenciai­s. Mas estas adaptações são inviabiliz­adas pela paralisia das análises.

Mais do que uma hostilidad­e a tal ou qual viés cultural, o tratamento dispensado à Lei Rouanet revela uma hostilidad­e à atividade cultural como um todo. É consequent­e: a cultura é o espaço por excelência da criativida­de e da crítica. Não à toa, é sempre o primeiro setor a ser aparelhado por regimes autoritári­os. Não tendo capacidade de aparelhar a cultura, Bolsonaro se satisfaz em asfixiá-la.

Produtores sofrem as nefastas consequênc­ias do desmantela­mento da cultura no País

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