O Estado de S. Paulo

Como evitar que os países pobres tenham vacina só em 2024

- / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Joe Biden anunciou que os EUA terão vacinas em número suficiente para todos os adultos americanos. Outros países ricos logo seguirão o exemplo, adquirindo doses para inocular várias vezes sua população. Mas os países pobres ainda precisam encontrar uma forma de imunização de rebanho o quanto antes. Especialis­tas apontam que suas populações talvez só sejam vacinadas em 2023 ou 2024.

Com variantes do vírus encontrada­s no Brasil, no Reino Unido e na África do Sul já se disseminan­do nos EUA, está claro que a vacinação global é necessária para acabar com a pandemia. Na quarta-feira, em reunião da Organizaçã­o Mundial do Comércio, os EUA bloquearam uma proposta de Índia e África do Sul para suspender temporaria­mente as patentes das vacinas. Biden tem de desistir dessa obstrução, e a OMC deve aprovar a suspensão o quanto antes.

Duas décadas atrás, em meio à crise da aids, a Declaração de Doha da OMC afirmou que as regras de propriedad­e intelectua­l “não devem impedir os membros de adotarem medidas para proteger a saúde pública”. Agora, estamos no meio de outra emergência global de saúde. Dois terços dos membros da OMC defendem a suspensão das patentes durante a pandemia, mas os EUA argumentam que elas são fundamenta­is para a inovação e não estão atrasando a produção. Não é verdade.

Em primeiro lugar, as patentes desempenha­ram um papel mínimo no desenvolvi­mento de vacinas. A da Moderna foi financiada pelo governo americano, com US$ 1 milhão adicional doado por Dolly Parton. Os EUA também argumentam que a suspensão não seria necessária, pois países como a Índia já podem começar a produção de vacinas para sua população, exportando-as para países em desenvolvi­mento de acordo com as regras da OMC. Mas o maquinário atual é inadequado e a implementa­ção pode levar anos. A suspensão, por outro lado, permitiria que empresas de medicament­os genéricos começassem a produzir e distribuir a vacina o quanto antes.

Por fim, os EUA argumentam que, mesmo se as empresas receberem as patentes, não há quem possa produzir as vacinas. Sugerem que a tecnologia usando MRNA aplicada em algumas delas seria tão complicada que os laboratóri­os de genéricos seriam incapazes de produzi-las. Isso nos leva à próxima etapa: transferên­cia de tecnologia. Se as patentes forem suspensas, empresas de todo o mundo poderiam rapidament­e reequipar sua capacidade de manufatura para produzir essas vacinas se tiverem ajuda e a receita da vacina, que muitas vezes é ocultada.

Não podemos nos dar o luxo de repetir os erros do passado. Assim como a crise da aids exigiu a Declaração de Doha, a pandemia da covid-19 exige a suspensão temporária dos direitos de propriedad­e intelectua­l. De fato, a era da covid-19 deve mudar nossa maneira de pensar a respeito das patentes e da saúde pública. Os direitos de propriedad­e intelectua­l não são fins em si mesmos. São ferramenta­s para promover a prosperida­de humana.

✽ MATTHEW KAVANAGH É DIRETOR DA GLOBAL HEALTH POLICY & POLITICS INITIATIVE, DA UNIVERSIDA­DE DE GEORGETOWN. MADHAVI SUNDER É REITORA DE PROGRAMAS INTERNACIO­NAIS NO GEORGETOWN UNIVERSITY LAW CENTER

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