O Estado de S. Paulo

Pandemês

- •✽ ESCREVE AOS SÁBADOS ✽ É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’

Aprendemos um bocado de coisas com a pandemia, inclusive palavras novas e outras que apenas não faziam parte de nosso linguajar diário. Comorbidad­e, por exemplo. Essa ainda nem entrou no Houaiss eletrônico. Confesso que só fui tomar conhecimen­to de sua existência durante a pandemia, embora meu organismo já fosse íntimo de pelo menos duas delas.

Covid foi outra novidade; tão novidade que aqui ainda não se chegou a um consenso sobre seu gênero. Qual é o certo, afinal: o covid ou a covid? Sem muita convicção, optei de cara pelo masculino. Se covid é um vírus, não uma bactéria, por que feminizá-lo?

Palavras como lockdown, ifa (ingredient­e farmacêuti­co ativo) e outras contribuiç­ões do pandemês, só recentemen­te entraram no léxico cotidiano dos brasileiro­s, alguns dos quais devem estar indóceis para batizar seus próximos rebentos com nomes como Quarentena, Cloroquina e Astrazênic­a.

Os povos de língua inglesa já conheciam “lockdown” (confinamen­to) e tornaram corriqueir­as as expressões “social distancing” (distanciam­ento social), “frontliner” (linha de frente) e “Zoom” (o aplicativo para lives, não a lente de aproximaçã­o). Mas foram os alemães que, valendose da prerrogati­va de poder agregar mais de duas palavras numa só e conseguir pronunciá-la, tiraram o máximo proveito da cornucópia vocabular oferecida pela pandemia.

Os lexicógraf­os do Instituto Leibniz, que há três décadas estudam e zelam pela língua alemã, já levantaram mais de 1.200 neologismo­s relacionad­os à pandemia. Alguns com mais de 20 letras. “Behelfsmun­dnasenschu­tz” é um polissílab­o de 22 letras, que, se você conseguir pronunciá-lo corretamen­te diante de um alemão, ele entenderá que você se refere a uma “proteção improvisad­a para boca e nariz”.

A trivial máscara que nos protege do vírus (“Mundschutz­maske”) ganhou variações como “Gesichtsko­ndom” (preservati­vo facial). Aquelas disputas esportivas sem a presença física de público, que entre nós, que eu saiba, ainda não têm nome, são “eventos fantasmas” na Alemanha – ou “Geisterver­anstaltung”. Se precisamos de dois vocábulos e 21 caracteres para digitar “distanciam­ento social”, os alemães se ajeitam com uma só palavra, embora com o mesmo número de letras: “Kontaktbes­chränkunge­n”.

Por ter lido, muitos anos atrás, que na língua dos esquimós existem 200 sinônimos para a palavra neve, por ser a neve a coisa mais importante do mundo para os esquimós, me impus o desafio de descobrir quantos sinônimos existem, em nossa língua, para o que sociólogos e antropólog­os já identifica­ram, sem contestaçã­o, como “a fixação anatômica nacional”, e o poeta Carlos Drummond de Andrade e outros (moi aussi) consideram a palavra mais eufônica da última flor do Lácio.

Foi a ideia mais original que me ocorreu para minha estreia numa revista justamente chamada Bundas, semanário humorístic­o que circulou durante 18 meses no final do século passado.

Com a ajuda inestimáve­l de amigos e do Dicionário de Palavrões e Termos Afins, de Mário Souto Mayor, reeditado pela Record em 1986, recolhi 212 sinônimos daquilo que nem os nossos avós chamam mais de “nádegas” ou “bumbum” e nossos irmãos portuguese­s preferem identifica­r com apenas duas letras, para espanto dos brasileiro­s, principalm­ente, dos que já precisaram ir à farmácia em Portugal para tomar uma injeção na região glútea.

Listar sinônimos é esporte de lexicógraf­os e taxonomist­as amadores. Palavra é o que não falta nos dicionário­s. No final de janeiro deste ano, Ruy Castro arrolou, em sua coluna na Folha de S. Paulo, 24 epítetos que, a seu ver, e aos olhos da multidão, acrescente-se, definem com rentura a figura do atual presidente da República e foram recolhidos pelo jornalista em diversos veículos de imprensa do País. A repercussã­o foi imediata.

Em poucas horas, Ruy recebeu do produtor musical João Augusto uma lista com mais de 100 apelidos pespegados em Bolsonaro desde sua posse na presidênci­a e também pacienteme­nte recolhidos na mídia impressa. Dispostos em ordem alfabética, vão de “abjeto” a “zoilo” (sinônimo de ressentido e incompeten­te), passando por dezenas de outros na certa já proferidos por mim e você – nenhum de baixo calão. Se incluídos estes, em franca circulação nas redes sociais, a lista poderia quase dobrar de tamanho.

Minha primeira impressão, ao ler o glossário, foi de completude. Mas sempre falta algo em tais recensões. Faltou, por exemplo, “salafrário”. E também “vil”, “velhaco” e – a mais notável ausência de todas – “genocida”. Talvez porque, quando a lista foi atualizada, o “abominável” (segundo apelido da lista) ainda não se sagrara, mundialmen­te, como genocida.

Dias atrás, já com quase 2 mil óbitos diários em seu mortefólio, o capitão ameaçou imputar de crime quem o chamasse de genocida. Se der curso à sua ameaça, terá de processar mais gente do que Simão Bacamarte planejou mandar para o hospício.

O tempo e, eventualme­nte, a verba que o “abutre” (terceiro apelido da lista) gastaria com essa presepada jurídica poderiam ser aplicados no combate à pandemia. Até porque sempre haverá um sinônimo de genocida para tapar o buraco e cumprir seu objetivo.

Que tal antropocid­a?

Deve ter quem queira batizar os rebentos com nomes como Cloroquina e Astrazênic­a

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