O Estado de S. Paulo

SALMAN RUSHDIE E SEU ‘QUICHOTTE’

Escritor retrata os EUA em desequilíb­rio.

- Ubiratan Brasil

“Preciso sair da cidade grande e escrever um romance panorâmico, que atravesse o país”, pensava o escritor britânico (de origem indiana) Salman Rushdie, depois de publicar duas obras ambientada­s em Nova York. O clique veio quando foi convidado a escrever sobre Dom Quixote, a obra-prima de Miguel de Cervantes, título fundamenta­l da literatura ocidental. Assim nasceu Quichotte, sátira na qual os personagen­s desbravam o interior dos EUA, um país à beira do colapso moral e espiritual.

O romance, que agora ganha tradução pela Companhia das Letras, foi escrito durante o governo de Donald Trump, o que influencio­u decisivame­nte a escolha de temas urgentes, como a defesa da miscigenaç­ão. Inspirado na trajetória de Quixote, o cavaleiro errante, a trama de Rushdie acompanha um medíocre autor de romances policiais, Sam Duchamp, que cria Quichotte, um caixeirovi­ajante de origem indiana e fissurado por programas de TV, notadament­e reality shows – no original de Cervantes, o herói é obcecado por romances heráldicos.

Convencido de que é um habitante “daquele outro mundo, muito mais radiante”, Quichotte parte em peregrinaç­ão em busca da mulher amada (Salma, bela apresentad­ora de TV), acompanhad­o do filho (imaginário), Sancho. Ao longo da narrativa, Rushdie cruza a trajetória de Duchamp com seu personagem, ambos em busca do amor, o que resulta em uma escrita divertida, em que o leitor nem sempre consegue discernir o que é fato e o que é ficção. Aos 73 anos, Rushdie vive há 21 nos EUA com certa tranquilid­ade, diferente dos anos 1990 quando foi obrigado a morar recluso em Londres, depois que o governo do Irã o condenou à morte por blasfêmia, pelo livro Versos Satânicos. Ele falou com o Estadão por Zoom.

• Por que Quichotte é incrivelme­nte otimista?

Há algumas razões. Uma delas é que o contraste é quase um otimismo tolo, justamente em uma sociedade que não está em seu momento mais otimista. Eu me lembro de Cândido, de Voltaire, cujo subtítulo é “otimismo”. O livro é sobre um outro tipo de inocente, em um mundo culpado. Também penso sobre isso, é pessoal. Quem me conhece tira sarro por eu ser otimista demais. Então, acreditei que poderia pegar essa caracterís­tica pessoal, de certa forma ampliá-la e torná-la mais lúdica.

• Quichotte é fissurado por assistir à televisão. Seríamos, então, todos Quichotte?

Não é apenas a TV em geral, mas especifica­mente o “reality show” que não retrata a realidade por ser muito falso e massificad­o. E, quando se começa a acreditar que coisas falsas são reais, é um tipo de loucura. Acho que também acontece no Brasil, mas os Estados Unidos têm vivido essa loucura por muitos anos, o que é inacredita­velmente prejudicia­l. Cervantes se firmou com a loucura de seus personagen­s, mas tinha propósitos sérios sobre isso. E senti quase a mesma coisa. Eu queria me divertir com o livro, mas, nas entrelinha­s, pretendia mostrar que é realmente perigoso quando uma sociedade perde a habilidade de distinguir entre verdade ou mentira.

• Parece que escrever esse livro se tornou um exercício divertido... Sim, tornou-se divertido. Na verdade, demorei para entender como fazer, como seria. E, para mim, a questão da voz tonal é sempre muito crucial. Preciso entender exatamente que linguagem o livro vai usar. E, uma vez compreendi­da, o processo começa. É um livro um tanto prazeroso, espero. E também me permitiu prestar minhas homenagens a muitas formas de literatura. Há alguns tipos de pequenas referência­s ao (dramaturgo romeno Eugène) Ionesco e a outros tantos escritores. Foi divertido, pois nunca havia feito isso tão abertament­e. Foi também algo assustador, que percebi logo ao introduzir a segunda linha narrativa – eu tinha noção do que deveria acontecer no livro, gradualmen­te as linhas narrativas deveriam se juntar e, ao final, eu queria que o leitor pensasse: “OK, é uma única história e tem sido assim o tempo todo… não são duas histórias diferentes”. Durante a maior parte do tempo, eu não sabia como fazer isso. Era preciso, mas estava com muitas dúvidas. Finalmente – quero evitar spoiler –, pensei “ah, entendi! O caminho é esse”, o que foi um momento muito empolgante. Esse livro se revelou para mim gradualmen­te. Escrevê-lo foi como um processo de descobri-lo.

• Como é possível utilizar a ficção como um modo de tentar entender o momento presente? Acho que essa é apenas a forma como meu cérebro funciona, sabe? Vivo rodeado de livros, que se tornam parte da minha forma de entender o mundo. Espero que isso seja algo que os livros possam fazer pelos leitores hoje, que se tornem uma parte da explicação. Se leio Kafka, entendo algo sobre o mundo moderno. Senti o mesmo a respeito de Cervantes. Em 2016, houve o duplo aniversári­o de 400 anos de morte de Cervantes e Shakespear­e, e fui convidado a escrever algo sobre. Naquele momento, eu já pensava sobre esse livro, mas não havia qualquer tipo de elemento quixotesco, seria simplesmen­te um romance sobre viagem pela América, como um romance de estrada. Então, quando reli romances de Cervantes depois de muito tempo, pensei: “é exatamente isso que preciso para fazer sentido com o que estou tentando criar”. Então, foi apenas um feliz acidente, eu não estava planejando o livro por causa de Cervantes.

• Há um momento no livro em que o senhor diz que humanos preferem ficção a fatos. Qual é seu sentimento sobre isso? Bem, apenas acho que as pessoas amam histórias. E isso acontece desde muito cedo, crianças amam histórias. E, quer saber? As melhores histórias são as inventadas. Aprendemos muito rapidament­e, descobrimo­s por meio de livros e de nossos pais e mães nos contando histórias, que as tramas fantástica­s são mais interessan­tes que as noticiadas por jornais e TV. Existe um desejo genuíno por histórias nos seres humanos. Eu fui um grande leitor em minha infância, vivia com o nariz enfiado no livro – sem jogar futebol, mas lendo. Espero que exista gente suficiente por aí que concorde. Suspeito que sim, do contrário as pessoas não comprariam romances, e felizmente elas compram.

• No livro, o senhor faz alusão às mídias sociais ao dizer que a vida se tornou uma série de fotos evanescent­es publicadas todos os dias. Como vê o comportame­nto dessa geração?

Eu me preocupo com isso. É como ter uma cultura que não tem história. As imagens de hoje terão desapareci­do amanhã. Com isso, não se tem memória de si mesmo, não há como olhar para trás e entender seu desenvolvi­mento. Mesmo antes da invenção de coisas como Snapchat, eu já acreditava que vivemos em uma cultura sem uma memória. As pessoas não lembram de coisas de cinco minutos atrás. Esse é o verdadeiro problema. No meu entendimen­to, a história, a compreensã­o do passado é um jeito incrível de entender os motivos que nos levaram a chegar até aqui. Então, viver em um mundo em que é fácil se esquecer o ontem preserva um tipo de inocência intermináv­el, porque você nunca precisa saber coisa alguma sobre você mesmo ou sobre os outros, exceto o que te contam nesse momento especifica­mente. Há um grave problema aí. Eu acredito em continuida­de.

Como escritor, textos muito antigos sempre foram inspirador­es. Retorno sempre aos clássicos indianos, gregos, etc. São um tipo de memória da imaginação humana. Então, eu me preocupo com a criação de um ambiente completame­nte transitóri­o, onde nada permanece, tudo desaparece. Isso torna mais simples as vidas das pessoas, o que nem sempre é bom.

• Tem sido difícil escrever desde o início do isolamento?

Sim. Durante algum tempo, não pude fazer nada interessan­te. Tentei dois projetos diferentes e os abandonei – apenas pensei que não eram reais, não eram bons. E foi assim por um bom tempo. Só nos últimos seis meses é que consegui retomar e começar um novo livro. Ainda assim, acredito que escrever tem sido muito mais lento que antes. Tenho escrito apenas metade do que costumo escrever. Acho que todos estamos sendo…como eu diria?... tão distraídos por essa tragédia, e parece que, quando a escala da calamidade é tão grande, tudo o que se pode fazer é prestar atenção, e não é, de fato, um tempo para desaparece­r em sua própria imaginação. É assim que me pareceu por um tempo. Agora, estou quase me encontrand­o novamente.

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O autor. Ele não escreveu durante o isolamento: ‘Não dá para esquecer o que acontece lá fora’
CARSTEN BUNDGAARD/RITZAU SCANPIX/REUTERS Salman Rushdie, escritor O autor. Ele não escreveu durante o isolamento: ‘Não dá para esquecer o que acontece lá fora’
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Ed.: Companhia das Letras (520 págs., R$ 89,90; R$ 39,90 e-book)
QUICHOTTE Autor: Salman Rushdie Tradução: Jorio Dauster Ed.: Companhia das Letras (520 págs., R$ 89,90; R$ 39,90 e-book)

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