O Estado de S. Paulo

O ‘MOTO-CONTÍNUO’ DE JOSÉ DAMASCENO

Maior exposição do artista reúne 80 obras dos últimos 32 anos.

- Antonio Gonçalves Filho

Anunciada como a maior exposição do artista carioca José Damasceno, 53, a mostra Motocontín­uo reúne, de fato, os seus principais trabalhos entre os 80 expostos na Pina Estação, de Método para Arranque e Deslocamen­to (1992/1993), sua primeira instalação – recortes de um carpete que ocupa uma sala inteira – a uma obra de grande impacto, Snooker (2001), apresentad­a pela primeira vez em São Paulo –, uma mesa de sinuca sobre a qual despencam de duas luminárias 2 mil novelos de lã laranja. A exposição tem como curador José Augusto Ribeiro, que selecionou obras realizadas entre 1989 e 2021. Ele conversou com o Estadão sobre a mostra na Pina Estação. Do Rio, por telefone, José Damasceno também falou com a reportagem.

Damasceno é um dos artistas brasileiro­s com maior presença no cenário internacio­nal, tendo participad­o das bienais de Veneza e Sidney, além de estar representa­do em coleções de peso (Cisneros). Uma das obras apresentad­as na Pina Estação, Trilha Sonora, foi exibida na 25ª Bienal Internacio­nal de São Paulo (em 2002). Passadas duas décadas, a peça ainda provoca grande impacto com suas fileiras de 3 mil martelos pregados na parede, que formam o desenho de uma cordilheir­a. Há também na mostra peças inéditas, como três bordados de lã (Pontinho, de 2017), uma escultura de pedra obsidiana (Sólido, de 2019) e Monitor Líquido (deste ano), resultante de um processo em que o giz de cera é derretido.

Tudo no trabalho de Damasceno remete ao processo de construção arquitetôn­ica, o que não surpreende quando se sabe que o artista frequentou um curso regular de arquitetur­a que não chegou a concluir. Isso explica o processo embrionári­o de Método para Arranque e Deslocamen­to, instalação concebida para o Espaço Sérgio Porto, no Rio. “Fiz uma maquete e passei um ano maquinando o que eu deveria fazer com ela, até decidir cortar o carpete aos pedaços e ocupar uma sala inteira do Espaço, em 1993.” A mostra foi sua primeira individual. Damasceno acabara de completar 25 anos e ainda não frequentav­a o circuito internacio­nal, o que só aconteceri­a na virada do século.

Outro segmento da mostra acentua a relação de Damasceno com a arquitetur­a. Moto-contínuo exibe 26 desenhos (em diferentes técnicas como nanquim, grafite e decalque) e dois polípticos de serigrafia feitos a partir de desenhos. A relação entre a representa­ção bidimensio­nal e a projeção tridimensi­onal é um aspecto visceralme­nte ligado à formação arquitetôn­ica do artista, também um grande leitor. “Posso dizer que a minha formação foi nas biblioteca­s dos museus, especialme­nte a do MAM do Rio, lendo sobre artistas e movimentos históricos.” Damasceno sente-se ligado aos artistas construtiv­istas (neoconcret­os, em particular) por afinidade, mas sabe que seus trabalhos são descritos muitas vezes pelos críticos como obras “surrealist­as’, o que não o incomoda.

Exemplo dessa “filiação’ é a obra (uma versão em carimbo) Organogram­a (2000-2021), formada pelas palavras “ontem, hoje e amanhã”, gravadas sequencial­mente em linhas na parede, como ramificaçõ­es arborescen­tes que subvertem o curso do tempo. O MOMA de Nova York tem uma versão do desenho (de 2002) em seu acervo. Não é impertinen­te evocar a relação do corpo com a escrita do surrealist­a belga Henri Michaux quando se veem essas ramificaçõ­es. “Eu refuto o surrealism­o como categoria, mas ele é, sim, uma fonte, não tem como ignorar”, diz Damasceno, observando que a relação da arte com o tempo “é muito particular”, citando, por exemplo, a pulsação de Magritte e Arp no imaginário contemporâ­neo, tanto quanto a vida da Virgem na capela de Scrovegni, pintada por Giotto no século 14.

“Damasceno é associado ao surrealism­o, à representa­ção do fantástico, mas, na verdade, seu trabalho é uma intensific­ação do real, caso da obra Can You Hear Me?, de 2006, que usa dois trompetes verdadeiro­s que perdem sua função ao serem unidos”, define o curador da mostra, que tem ainda fotografia­s feitas pelo artista. “O seu é um trabalho de construção e desconstru­ção contínua, que recorre a grandes quantidade­s de um mesmo item, sejam martelos ou cigarros, remetendo, por exemplo, a Tony Cragg ou, em outras obras, a Walter de Maria e Richard Long.” Na mostra, há ainda uma versão de Re:pública (2017) no andar térreo da Pina Estação, visão irônica sobre a falta de direção do olhar da República, representa­da por uma cédula de real – familiar e reconhecív­el – em que a figura se mostra insegura e perplexa. Não é para menos diante da situação da República real.

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FOTOS ALEX SILVA/ESTADÃO Snooker. Mesa de sinuca sobre a qual despencam de duas luminárias 2 mil novelos de lã laranja foi concebida em Portugal em 2001 e é montada em São Paulo pela primeira vez
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Concreto. No sentido horário estão a peça ‘Projeto-objeto’ (2006), que faz referência à arquitetur­a; os dois trompetes colados de ‘Can You Hear Me’ (2006), a peça com giz de cera (‘Monitor’, 2015) e ‘Trilha Sonora’, com 3 mil martelos, apresentad­a na Bienal de 2002

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