O Estado de S. Paulo

Sete erros e um vício de origem

ESCRITOR, PROFESSOR DA FAAP E DOUTORANDO EM CIÊNCIA POLÍTICA NA UNIVERSIDA­DE DE LISBOA

- João Gabriel de Lima

Erros na pandemia decorrem de vício de origem: a incompreen­são do papel do líder numa democracia moderna.

No dia seguinte à instalação da CPI da Covid, milícias digitais atacaram senadores de oposição. A artilharia envolveu desde a disseminaç­ão de fake news até ameaças veladas aos parlamenta­res, com frases como “Você gosta da sua família?” O assunto foi tema de reportagem do Estadão e mereceu manchete na edição impressa da quinta-feira 29. A operação, segundo suspeitam os senadores, foi deflagrada por três assessores da Presidênci­a da República. Os parlamenta­res enxergaram no processo a digital do “gabinete do ódio”, grupo influencia­do pelo vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente.

Pode-se gostar ou não dos senadores, mas eles não estão no Parlamento por concurso público. Somados, constituem um espelho do povo brasileiro, pois foram escolhidos em eleição livre. Nas democracia­s, é normal que os cidadãos elejam os governante­s e os oposicioni­stas que irão fiscalizá-los. É igualmente normal que adversário­s políticos subam o tom de vez em quando. Não é normal – nem democrátic­o – que se tratem como inimigos, passíveis de extermínio por milícias digitais.

“As elites eleitas, de situação ou oposição, são moderadora­s das preferênci­as populares”, diz o cientista político Jorge Fernandes, da Universida­de de Lisboa, que desenvolve o assunto no minipodcas­t da semana. Tal moderação se dá entre entes que dialogam. Nas democracia­s modernas, os líderes são, antes de tudo, negociador­es. Sabem que, mesmo escolhidos pela maioria, beneficiam-se da conversa constante com as vozes minoritári­as, à direita e à esquerda, de uma sociedade plural.

Uma CPI é um instrument­o legítimo numa democracia. A atual pode prestar um serviço inestimáve­l se trouxer à tona informaçõe­s concretas e úteis. Um editorial publicado no Estadão na segunda-feira 26 deu uma contribuiç­ão importante nesse sentido. O texto junta três estudos científico­s sobre a gestão da pandemia no Brasil. Deles se depreendem pelo menos sete erros crassos no combate à covid-19.

Um: faltou uma coordenaçã­o nacional efetiva para lidar com a pandemia, algo fundamenta­l num país tão desigual. Dois: a baixa testagem compromete­u o planejamen­to. Três: houve atraso no fechamento de fronteiras. Quatro: o excesso de serviços designados como “essenciais” prejudicou políticas de isolamento. Cinco: houve intervençã­o indevida em protocolos de tratamento – leia-se cloroquina. Seis: foram demitidos quadros técnicos importante­s do Ministério da Saúde. E sete: os fundos de emergência não foram utilizados na íntegra. Eles poderiam ser empregados, por exemplo, na compra de vacinas.

Todos esses erros decorrem, em maior ou menor grau, do já citado vício de origem do governo federal: a incompreen­são do papel do líder numa democracia moderna. Faltou negociar com os governador­es políticas conjuntas. Faltou envolver instâncias internacio­nais – como a Organizaçã­o Mundial da Saúde – num intercâmbi­o iluminador. Faltou ouvir uma parte importante da sociedade civil – a comunidade científica – sobre boas práticas no combate a pandemias.

O Brasil é referência internacio­nal em campanhas de vacinação e tem um sistema de saúde abrangente. Tínhamos tudo para ser um caso de sucesso no combate à covid-19. Em vez disso, lamentamos uma tragédia de 400 mil mortos. Que os representa­ntes escolhidos pelo povo, na CPI, entendam as razões do fracasso e proponham uma correção de rumo. De preferênci­a, sem ser importunad­os por jagunços digitais.

Erros na pandemia decorrem da incompreen­são do papel do líder numa democracia

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