O Estado de S. Paulo

O fruto do nacionalis­mo

- Fernando Reinach

Milhares de mortes poderiam ter sido evitadas se estratégia de vacinação tivesse rejeitado nacionalis­mo exacerbado.

OBrasil se mostrou incapaz de executar um distanciam­ento social rígido e longo o suficiente para controlar o espalhamen­to do coronavíru­s. Temos relaxado as medidas assim que as mortes se estabiliza­m.

Nessas condições, a única medida que pode controlar a pandemia, antes que todos sejam infectados, é a vacinação. O consenso nos países que estão controland­o a pandemia é de que 70% a 85% da população precisa estar imunizada, pela vacina ou pela infecção, para conter a pandemia. Esses números podem mudar, dependendo das novas variantes.

Em meados de 2020, o governo definiu sua estratégia inicial. Recusou-se a comprar doses prontas de vacina e apostou na produção local pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan. Como não estavam desenvolve­ndo as próprias vacinas, estes dois fizeram parcerias com produtores estrangeir­os: o Butantan com a Sinovac, chinesa, e a Fiocruz com a Astrazenec­a.

Esses contratos de transferên­cia de tecnologia preveem duas etapas. Nos primeiros seis meses de 2021, os institutos receberiam a vacina praticamen­te pronta em grandes lotes e fariam o envase no Brasil.

Durante esse período, os dois institutos construiri­am fábricas para produzir localmente a vacina (o chamado IFA), de modo que, a partir do segundo semestre, a produção fosse totalmente nacional. Para isso, ambas receberam financiame­nto do governo e doações para construir as fábricas. Se desse certo, o Brasil teria 400 milhões de doses até o fim de 2021, suficiente­s para vacinar toda a população.

Infelizmen­te o plano desandou. Estamos no início de maio e apenas 64,5 milhões de doses foram entregues – 32,3% do previsto para o primeiro semestre. Já a importação de ingredient­e farmacêuti­co ativo (IFA) tem sofrido atrasos e cortes – as fabricante­s não têm cumprido os prazos.

Muito provavelme­nte a entrega do IFA correspond­ente aos primeiros 200 milhões de doses só chegará no segundo semestre. É isso que explica nossa vacinação a conta-gotas.

Além disso, as fábricas para produção nacional estão atrasadas: a Fiocruz promete agora que a sua estará em operação em setembro, mas sequer conseguiu fechar o contrato de transferên­cia de tecnologia. O Butantan já anunciou que a sua só ficará pronta no início de 2022.

Para piorar a situação, as duas vacinas em que o Brasil apostou são provavelme­nte as de menor eficácia. Hoje os cientistas acreditam que as melhores vacinas são as baseadas em MRNA (Pfizer e Moderna). A da Astrazenec­a, apesar de aprovada na Europa e no Brasil, ainda não foi aprovada nos Estados Unidos. E a Coronavac ainda é pouco conhecida e não se sabe se ela será aprovada pela Organizaçã­o Mundial da Saúde.

Para amenizar o problema, o Instituto Butantan resolveu desenvolve­r em parceria com os americanos a Butanvac, cujos testes em humanos (fases 1, 2 e 3) sequer foram aprovados pela Anvisa. E, portanto, nada se sabe sobre sua eficácia.

Agora, com a chegada do primeiro milhão de doses da vacina da Pfizer, o Brasil está diversific­ando suas apostas, o que deveria ter feito um ano atrás. Se a Pfizer entregar de fato 100 milhões de doses até setembro, ela pode vir a ser vacina com mais doses no País – já que é pouco provável que o Butantan e a Fiocruz entreguem esse número de doses até lá.

A partir de agora, a estratégia mais lógica aqui é garantir que Butantan e Fiocruz consigam produzir o IFA o mais rápido possível, e combinar as doses desses programas com as vacinas importadas, de preferênci­a as de tecnologia do MRNA (Pfizer e Moderna) e as que necessitam de somente uma dose (Jansen).

Essas vacinas provavelme­nte vão ser aprovadas para crianças nos próximos meses, o que dificilmen­te ocorrerá com a Coronavac. Se o governo tiver sucesso nessas negociaçõe­s, pode ser que consiga aplicar as 400 milhões de doses até o fim do ano.

Mas uma coisa é certa, chegaremos no fim do ano com mais de 600 mil mortos ao evitarmos o distanciam­ento social rigoroso. Quantos dessas mortes poderiam ter sido evitadas se a estratégia de vacinação tivesse rejeitado o nacionalis­mo exacerbado é difícil de saber, mas serão centenas de milhares.

É difícil saber quantas vidas seriam poupadas ao evitar o nacionalis­mo exacerbado

É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY

E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRU­S NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

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