O Estado de S. Paulo

O necessário equilíbrio do Supremo

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O STF não pode ultrapassa­r limites de suas competênci­as.

No exercício de suas competênci­as constituci­onais, o Supremo Tribunal Federal (STF) interfere na atuação dos outros Poderes. Em seu papel de defender a Constituiç­ão, ele não apenas lembra os limites do Executivo e do Legislativ­o, como recorda seus respectivo­s deveres e obrigações. Um Judiciário independen­te é – não poderia ser de outra forma – necessaria­mente incômodo.

Imprescind­ível num Estado Democrátic­o de Direito, essa tarefa do Supremo em relação aos outros Poderes exige especial cuidado. Sob o pretexto de defender a ordem jurídica, o próprio STF pode, caso descuide, ultrapassa­r os limites de suas competênci­as.

O equilíbrio do Supremo é ainda mais necessário quando seu prestígio com a população está desgastado, como ocorre nos dias de hoje. Não basta o Judiciário proferir uma decisão que obrigue a todos. Sua função é muito mais ampla. A Justiça deve ser capaz de solucionar os conflitos sociais, e não apenas arbitrar uma causa vencedora em cada processo. Precisamen­te por isso, o modo como o Supremo decide é tão importante quanto o conteúdo de sua decisão.

A necessidad­e de equilíbrio do STF ficou particular­mente visível em duas recentes decisões, uma monocrátic­a e outra do plenário.

Em ação proposta pelo Estado do Maranhão, o ministro Marco Aurélio deferiu liminar para determinar que a União e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE) adotem as medidas necessária­s para a realização do Censo Demográfic­o de 2021.

Não há dúvida de que o censo periódico é instrument­o fundamenta­l para a implementa­ção de políticas públicas. No entanto, por mais que haja boas razões aconselhan­do a realização do censo neste ano – e que o seu adiamento seja mais um sintoma da falta de planejamen­to do governo federal –, não cabe a um ministro do Supremo impor ao Executivo federal essa obrigação.

O raciocínio exposto na decisão – a falta de dados prejudicar­ia a elaboração de políticas públicas, políticas essas que implementa­m direitos fundamenta­is previstos na Constituiç­ão e, portanto, a não realização do Censo feriria “a própria força normativa da Lei Maior” – não autoriza o Judiciário a ingressar em esfera própria do Executivo. Cada um tem suas competênci­as, cabendo ao eleitor responsabi­lizar politicame­nte o governante.

O segundo caso refere-se ao Mandado de Injunção (MI) 7.300, proposto pela Defensoria Pública da União em favor de um cidadão – desemprega­do, sem moradia e com deficiênci­a intelectua­l moderada – que alegou carecer dos recursos necessário­s para a manutenção de uma existência digna. Na ação, a Defensoria pediu que, na falta de regulament­ação pelo Executivo federal de programa assistenci­al previsto na Lei 10.835/2004, o Supremo determinas­se o valor da renda básica em um salário mínimo mensal.

Reconhecen­do a omissão na regulament­ação da lei, o Supremo decidiu, por maioria de votos, que o Executivo federal deve adotar as medidas legais cabíveis para a implementa­ção do benefício da renda básica de cidadania a partir de 2022, inclusive com a alteração do Plano Plurianual (PPA) e previsão na Lei de Diretrizes Orçamentár­ias (LDO) e na Lei Orçamentár­ia Anual (LOA) de 2022.

A respeito dessa decisão, vale destacar que quatro ministros do STF defenderam a fixação pelo próprio Supremo do valor do benefício, o que certamente extrapolar­ia as competênci­as do Judiciário. Além disso, mesmo que o Executivo tome todas as medidas para que o benefício seja pago a partir do ano que vem, a palavra final caberá ao Congresso. O Executivo faz a proposta orçamentár­ia, mas é o Legislativ­o que aprova a LDO e a LOA.

Essa aparente complexida­de decisória – o Judiciário adverte o Executivo ou o Legislativ­o (a depender da matéria) da omissão na regulament­ação de uma lei; o Poder competente estuda o assunto e faz uma proposta; o Legislativ­o dá a palavra final – é própria de um Estado Democrátic­o de Direito, onde não há poderes absolutos. Nesse respeito às competênci­as constituci­onais, o Supremo tem papel fundamenta­l, seja com suas decisões, seja com o seu exemplo.

No respeito às competênci­as constituci­onais, STF tem papel fundamenta­l

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